Voltar ao passado, não obrigado
Todos queremos tudo, esquecendo-nos que ainda somos devedores de parte dos empréstimos que a troika nos trouxe em troca de medidas que a todos prejudicaram.
Quem está atento ao desenvolvimento das notícias ao longo dos anos, ou dos meses, sobre a política em Portugal acha, decerto, estranho alguns desenvolvimentos noticiosos que se vão repetindo exaustiva e sucessivamente ao longo de tempos bem definidos que nos podem levar a pensar num possível objetivo estratégico.
Poucas semanas após a tomada de posse do novo Governo os media TV iniciaram uma campanha de procura de “notícias” negativas sobre o SNS emitidas vezes sem fim, o Tejo sem a água que deveria vir de Espanha, os olivais do Alentejo e a degradação dos solos, as plantações em estufas e os abrigos contentores para os trabalhadores, a falta de médicos e enfermeiros nos hospitais, a falta de funcionárias auxiliares nas escolas, um rol sem fim. A estas e outras notícias acrescente-se ainda as greves para aumentos na função pública, reivindicações da PSP e da GNR, à esquerda e à direita do PS exige-se baixar o IVA da eletricidade de 23% para 6%, atrasos nos pagamentos do estado a empresas, enfim, a falta disto e daquilo, pressões para baixar impostos, aumentar a despesa, exige-se investimentos que faltam aqui e ali, e reivindicam-se subsídios para tudo e mais alguma coisa.
Todos queremos tudo e cada vez mais fazendo passar a imagem de que os recursos não são finitos e que há prioridades. O desconhecimento desta realidade parece ser intencional. A direita, em especial os dois candidatos à liderança do PSD, dizem que tudo está por fazer, mas que eles tudo poderem fazer pelo país. Prometem reformas do Estado nada dizendo como, nem quais, nem com que recursos.
É por demais conhecido o que a direita prometeu durante a campanha eleitoral se fosse poder: baixar impostos, fazer mais investimento, melhorar o SNS, o que é de facto, necessário, sem apresentar um projeto concreto, sem dizer como, nem como obter o financiamento para tais aventuras. Rui Rio apresentava na altura uma contas atabalhoadas em nada convincentes.
Porque as contas públicas estão certas e o défice diminuiu e há uma pequena margem orçamental passámos a reivindicar mais do que é possível ameaçando o que todos conseguimos com o nosso esforço ao longo dos últimos quatro anos e meio.
Um apagador parece ter passado pela nossa memória coletiva, social e histórica, somatório de todas as memórias individuais, pelo menos de algumas, a maioria. O esquecimento da tragédia do passado que pode representar um alívio pode voltar a repetir-se novamente no futuro. Para que tal não aconteça é necessário que as lembranças sejam reconstruídas e reconhecidas por todos.
Há reivindicações justas, necessárias, obrigatórias até, mas também acho que ninguém pretende voltar a um passado constrangedor causado por pressões sucessivas sobre os governos com reivindicações por vezes irrealistas e oportunistas sem ter em conta que todos, mesmo os que reivindicam, vão pagar com impostos tudo aquilo que obtiverem.
Para quem quiser reavivar a memória abaixo faço uma síntese, ainda que incompleta do passado relativamente recente que nos levou a uma austeridade desenfreada. O despesismo foi o mote para outros que a seguir nos governaram poderem retirar o pouco que já tinha sido conseguido, elegendo como meta o empobrecimento da maioria e o enriquecimento de poucos, é o que as estatísticas e estudos nos dizem. Penso que ninguém quer novamente voltar a um tempo como esse.
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Para contextualizar é inevitável regressar um pouco ao passado ainda presente nas nossas memórias antes da troika atracar em Portugal para corrigir desmandos da governação de Sócrates com a aceitação implícita do então seu ministro das finanças Teixeira dos Santo que quase nos conduziram á bancarrota. Desmandos despesistas e gastos desnecessários em contrapartida com cortes em salários, despesas necessárias e aumentos de impostos não nos salvaram dum governo de direita em comunhão com a intervenção externa.
Tudo começou com cedências sucessivas às pressões dos vários lóbis de modo semelhante aos pedidos e exigências de modo idêntico ao que agora se passa.
Ao apresentar o Orçamento de Estado para 2009 dizia o primeiro-ministro José Sócrates garantir programas para o alargamento da rede de creches e lares de idosos. Sobre o Orçamento de Estado de 2009 dizia o então primeiro-ministro que as instituições particulares de solidariedade social beneficiariam de transferências de meios públicos na ordem dos 1,2 milhões de euros. Além destas áreas sociais, Sócrates referiu que o Orçamento investiria na melhoria dos cuidados de saúde Na sua intervenção, José Sócrates procurou também evidenciar que, no ano seguinte, 2009, os funcionários públicos seriam aumentados acima da inflação (2,9 por cento) e afirmava que “o Governo fará do sector da educação ‘uma prioridade’, a par da ciência”.
Durante o seu segundo mandato, iniciado em outubro de 2009 e que não chegou ao fim, o primeiro-ministro José Sócrates anunciava em setembro de 2010 um novo pacote de medidas de austeridade como o aumento do IVA para 23% e um corte de até 10% na despesa total de salários do sector público, entre outras medidas de austeridade aprovadas em Conselho de Ministros extraordinário como o aumento de impostos, corte de salários e prestações sociais, congelamento de todo o investimento público até ao final do ano e redução do número de contratados na função pública. Entre as dez principais medidas de abate da despesa destacadas pelo primeiro-ministro conta-se a redução média da massa salarial dos funcionários públicos em 5% nos vencimentos entre 1.500 e 2.000 euros, a redução será de 3,5% nos escalões mais elevados, o corte chega aos 10%.
Estimava então que iria reduzir a despesa do estado em 3.400 milhões de euros e aumentar a receita em 1.700 milhões de euros.
O primeiro-ministro, na altura José Sócrates assumiu perante os portugueses que as medidas do pacote eram “difíceis e exigentes”, com a necessidade de honrar compromissos internacionais e enviar «sinais convincentes e claros» aos mercados, que nas últimas semanas tinham colocado Portugal sob fortes restrições à obtenção de crédito e afirmava que «estas medidas só são tomadas quando um político entende em consciência que não há nenhuma outra alternativa. foi essa a conclusão a que cheguei agora e não em maio». Teixeira dos Santos desafiava quem achasse que se deve cortar mais na despesa para evitar aumento de impostos que apresente propostas adicionais.
Face a estas medidas a CGTP, UGT e STE (Sindicatos dos Quadros Técnicos) ficam contra cortes de salários na função pública e dizem que são sempre os mesmos a pagar a crise.
As estruturas sindicais da administração pública, da CGTP e da UGT, em uníssono diziam que o corte em 5% nos salários da função pública anunciados pelo Governo iria suscitar protestos por parte dos trabalhadores porque para a coordenadora da Frente Comum da Administração Pública (CGTP) Ana Avoila, as novas medidas de austeridade eram «provocatórias e inaceitáveis».
«O descontentamento dos trabalhadores vai decerto culminar numa greve». O secretário coordenador da Frente Sindical da Administração Pública (UGT), Nobre dos Santos, também se mostrou preocupado com as «medidas anunciadas pelo Governo, porque levam a uma perda efetiva de rendimento dos trabalhadores». São os mesmos argumentos de sempre «mais uma vez quem paga a crise são os trabalhadores portugueses: os da administração pública e de uma forma, e os do sector privado de outra».
Para o ministro das finanças Teixeira dos Santos as remunerações iriam ser reduzidas e seriam mesmo para continuar e as reformas que até ali não eram tributadas em IRS passariam a sê-lo com a frase na altura “…mas por que é que os reformados não hão de pagar IRS?...”.
Apesar da grave situação económica (e agora também política) que o país enfrentava, as medidas de austeridade apresentadas pelo XVIII Governo não convenceram o Parlamento e a oposição alega que este novo Programa de Estabilidade e Crescimento vai prejudicar ainda mais os já desfavorecidos. A votação contra o PEC 4 do PSD, CDS, PCP e BE fizeram com que o primeiro-ministro viesse demitir-se e a afirmar que a oposição rejeitou não o PEC4, mas "as medidas que o Governo propôs para evitar que Portugal tivesse de recorrer a um programa de assistência financeira externa."
José Sócrates apresenta a demissão em 23 de março de 2011, devido à rejeição do novo Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) 2011-2014. Manteve-se em funções como Governo de gestão até 21 de junho de 2011. Foi ainda este XVIII Governo Constitucional a negociar com a “troika” o pedido de ajuda financeira internacional.
Rematou com a passagem de culpas para Passos Coelho e para os outros partidos ao dizer que a “crise política, neste momento, tem consequências gravíssimas sobre a confiança que Portugal precisa de ter junto das instituições e dos mercados financeiros. E, por isso, os que a provocaram, sem qualquer fundamento sério e sem alternativas, são responsáveis pelas suas consequências."
O que se passou então com a tomada de posse do XIX Governo Constitucional depois da demissão de José Sócrates e das eleições que elegeram uma maioria absoluta em que dois partidos, PSD e CDS, se coligaram para formar governo?
Várias foram as causas que antecederam este desfecho: no dia 12 de março, Pedro Passos Coelho, presidente do PSD, afirmava que as novas medidas do PEC que previa, entre outros, a revisão em alta da taxa de desemprego de 10.8% para 11.2% e o corte nas pensões acima dos 1500€ através da aplicação da Contribuição Extraordinária de Solidariedade, não contariam com o voto dos sociais-democratas.
José Sócrates, em entrevista à SIC, advertia na altura que a inviabilização do PEC abriria uma crise política com consequências «terríveis» para Portugal e falou do FMI e das suas consequências a 23 de março, o Parlamento aprovou os projetos de resolução que rejeitaram o PEC por parte da oposição a o país.
Sócrates classificou a atual crise como «desnecessária, evitável e inoportuna», a acontecer no pior momento para Portugal. Culpou os cinco partidos da oposição que apelidou de «coligação negativa», lamentando que nenhuma força política tenha estado disponível para a negociação do PEC, acusando os partidos de nunca terem querido comprometer-se com a governação
Em Bruxelas, Jean-Claude Juncker, presidente do Eurogrupo, não vê «nenhuma razão» para alterações ao PEC e afirmou que obteve garantias claras de Pedro Passos Coelho de que as metas do programa de estabilidade acordado entre Portugal e a Zona Euro serão cumpridas caso o PSD venha a liderar o próximo Governo. Isto é, a rejeição do PEC 4 que serviu para a demissão do primeiro-ministro e lançar eleições antecipadas foi o conteúdo do mesmo PEC 4 que Passos Coelho assumiu como metas a cumprir para coma U.E.
Em julho de 2011 Passos Coelho, já primeiro-ministro, admitiu que o Governo foi além das medidas incluídas no acordo com a troika, mas salientava que isso era essencial para o regresso de Portugal mais cedo aos mercados internacionais e admitia que o Governo tinha incluído no seu programa não apenas as orientações que estavam incorporadas no memorando de entendimento mas também "como várias outras que, não estando lá, são essenciais para o sucesso desta transformação" do país.
Passos Coelho referiu-se, na ocasião às medidas a antecipar de 2014 para esse ano com o objetivo de reduzir a despesa pública em "cerca de 600 milhões de euros", tendo informado na sua comunicação ao país que seriam centradas nas áreas da segurança social, saúde, educação e empresas públicas.
Não se ficando por aqui tratou dos cortes de salários e pensões. Cerca de dez dias após ter tomado posse, o novo primeiro-ministro anunciou a criação de uma sobretaxa de IRS, equivalente a 50% do subsídio de Natal que fique acima do salário mínimo (485 euros) que afinal verificou tal medida tinha sido desnecessária porque a meta do défice para esse ano, na altura 4,2% tinha sido cumprida.
Houve ainda mais, anunciou também a eliminação dos subsídios de férias e de Natal para os funcionários públicos e pensionistas que ganhassem mais de 1100 euros (o corte progressivo começa para quem recebe mais de 600 euros) e esta medida teria efeitos em 2012, 2013 e 2014., tendo todavia esclarecidos que o retorno dos subsídios seria provisório e que voltariam a ser pagos na totalidade apenas a partir de 2018. Se nessa altura viesse ser governo o que não se verificou seria a promessa cumprida. Desculpem-me a minha desconfiança, mas duvido.
Haveria muito mais para continuar, acho, todavia, que esta amostra é suficiente para termos todos cautela com o que se pretende impor ao Executivo pressionando no domínio do despesismo acelerado como aqueles com que somos diariamente confrontados nos jornais televisivo. Todos queremos tudo, esquecendo-nos que ainda somos devedores de parte dos empréstimos que a troika nos trouxe em troca de medidas que a todos prejudicaram.