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Um artigo de opinião João Miguel Tavares: Como envenenar ideologicamente uma luta que é de todos

03.10.23 | Manuel_AR

Como envenenar ideologicamente uma luta que é de todos

A esquerda radical anda há anos a parasitar a causa do clima e da habitação com base na mais velha das falácias: todos os males do mundo derivam do modelo de desenvolvimento capitalista.

João Miguel Tavares

João Miguel Tavares

In jornal Público

3 de Outubro de 2023

Expliquem-me muito devagarinho: qual é a relação entre o problema da habitação em Portugal e a crise climática? Foi o aumento da temperatura na superfície da Terra que fez disparar o preço das casas no centro de Lisboa? Foi o recuo das calotes polares e o degelo do permafrost a causa de os jovens universitários só arranjarem quartos manhosos a preços obscenos? Ou talvez seja melhor pôr a pergunta ao contrário: se não há ligação perceptível entre a calote polar e o calote imobiliário, a que se deve a organização de um protesto simultaneamente pelo direito à habitação e pela justiça climática, como aquele que ocorreu este fim-de-semana em todo o país?

Desconfio que a resposta esteja na própria manifestação: querem convencer-nos de que lutar a favor da habitação e do clima implica combater fervorosamente o capitalismo. Esse é o ponto comum. São lutas de que a esquerda exige ser a única senhoria. Não há bom ambientalista que não seja anticapitalista, nem inquilino entalado que não seja explorado. Bastou ouvir os cânticos e as palavras de ordem da tarde de sábado: “Senhorio não é profissão” ou (o meu favorito) “Turistas, chegou a vossa hora, emigrantes ficam e vocês vão embora!”

Mas houve mais. A montra de uma imobiliária partida à martelada. Um cartaz que dizia “Morte aos ricos”. Vaias e assobios quando a manifestação passou em frente ao Banco de Portugal. E dois deputados do Chega que, ao tentarem juntar-se ao cortejo, conseguiram aparecer no telejornal no papel de perseguidos: foram insultados, empurrados e aconselhados a sair dali por razões de segurança. “Fascistas, fascistas não passarão”, ouviu-se. Mas será que um fascista não pode ter problemas em pagar a renda?

Pelos vistos, não pode. Mariana Mortágua explicou porquê: a habitação (e também o clima, já agora) são causas de que a esquerda reclama direitos de propriedade exclusivos. Por isso, lá estava ela, e Paulo Raimundo, e Rui Tavares. A reacção dos manifestantes à presença dos deputados do Chega foi, nas palavras de Mariana Mortágua, “muito razoável”, já que o Chega é um “partido de extrema-direita que defende interesses imobiliários e os 'vistos gold'”. Tendo em conta que o fim dos "vistos gold" foi anunciado este ano, isso significa que Mariana Mortágua passou os quatro anos da "geringonça" a apoiar um partido que defendeu os interesses imobiliários e os "vistos gold", sem que por isso tinha gritado com António Costa.

Sim, os deputados do Chega apareceram para parasitar a manifestação “Casa Para Viver, Planeta Para Habitar”. Mas a esquerda radical anda há anos a parasitar a causa do clima e da habitação com base na mais velha das falácias: todos os males do mundo derivam do modelo de desenvolvimento capitalista, e não há luta social ou ambiental que não exija o desmantelamento da economia de mercado como a conhecemos – apesar de ter sido ela a grande responsável pela época de maior prosperidade da História da humanidade.

O objectivo dessa falácia anticapitalista, que nos é diariamente enfiada pela goela abaixo, é óbvio: usar os problemas do clima ou da habitação como cavalos de Tróia da enésima tentativa de revolucionar as bases das democracias liberais. Infelizmente, envenenar com ideologia barata aquilo que são lutas transversais à sociedade tem uma péssima consequência: diminui os níveis de consenso em torno dessas causas e atrasa a resolução de problemas que afligem todos, incluindo comunistas e fascistas.

O autor é colunista do PÚBLICO

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