É conveniente chamar a estas reações vindas da parte da esquerda mais à esquerda aquilo que são: desumanidade e antissemitismo.
Um artigo de
in Jornal Público
Dos mais vis ataques que me lembro de ver. O Hamas fez uma incursão em território israelita onde deliberadamente alvejou civis. Filmou tudo: queria que o mundo não ficasse com dúvidas sobre a sua barbárie (e não ficámos). Decapitou bebés. Raptou crianças pequenas e pôs em jaulas. Caçou mulheres num festival de música e exibiu-as depois do cativeiro, umas mortas e despidas com soldados sentados em cima do corpo, outras ensanguentadas no meio das calças. Provavelmente violadas – sabemos bem, desde o ISIS, o que fazem às raparigas que sequestram. Senhoras de idade raptadas. Famílias exterminadas em casa. Jovens do festival de música massacrados.
Com este nível de crueldade e desumanidade contra civis não pode haver contemplações, certo? Errado. A esquerda do PCP e do BE entrou em mais um poço moral, tal o ódio a Israel.
Estes dias notabilizaram-se pela sua mais imoral ausência de condenação do Hamas. Pelo contrário, julgaram oportuno culpar a ocupação israelita (atualmente existe nos colonatos na Cisjordânia, que nada tem que ver com o Hamas, mas não na Faixa de Gaza). Foi o caso de Marisa Matias ou Pedro Filipe Soares. No PCP, Alma Rivera chamou “vassalos” ao Governo português por condenar o Hamas e comentou que é “preciso ser muito asqueroso” num retuíte que fez de Ursula von der Leyen.
Para evitarem dizer o óbvio – os terroristas do Hamas estão no cimo do pódio ignóbil – li, do lado esquerdo, as mais originais desculpas para o atentado. Li que o Hamas – uma criação do Irão, que, de resto, lhe deu ajuda e armamento para o ataque de sábado; eleito em eleições livres de toda a população para governar Gaza, à altura explicado nas televisões e jornais portugueses que devido à magnífica obra social (não é ironia) dos terroristas – afinal foi uma criação de Israel.
Li que havia apartheid em Israel – porventura não sabem o que significou a palavra. E limpeza étnica e genocídio aos palestinianos – quando são 20% da população de Israel, vivem dentro do país quase sem episódios de violência e têm aumentado o número.
Em Lisboa houve uma manifestação, apoiada pelo BE, chamando ao ataque terrorista “ação de resistência” e dando como legítimos “qualquer meio à disposição” dos palestinianos de alvejarem Israel e israelitas. Uma sorte o Hamas não ter umas ogivas nucleares, ou estes bondosos cidadãos aplaudiriam o seu uso. Em Sydney, uma manifestação pró-Palestina gritou o slogan Gas the jews. Calhando não sabem que já foi feito e se chamou Holocausto.
É conveniente chamar a estas reações vindas da parte da esquerda mais à esquerda aquilo que são: desumanidade e antissemitismo. Agora mascarado de luta anticolonial (como se a questão Israel-Palestina tivesse que ver com colonialismo; mas temos de lhes perdoar, é o que aprendem lendo boletins de extrema-esquerda) e assanhado, porque muitos judeus foram para os Estados Unidos e este país (origem de todo o mal) é aliado de Israel.
Não se trata aqui, da minha parte, de endeusar ou branquear Israel. Netanyahu é um político capaz de tudo, inclusive vender-se aos judeus ultraortodoxos (tão indesejáveis quanto os islâmicos conservadores) e dar cabo da democracia israelita. Tão absorvido está por manter o seu poder que permitiu a invasão de Israel, Estado ultrassecuritário, pelo Hamas. Os longos excessos militares de Israel estão documentados (os do continuado terrorismo palestiniano também).
Os israelitas árabes, formalmente com os mesmos direitos, são desconsiderados pela população judaica. São mais pobres do que os conterrâneos judeus, menos escolarizados, com menos oportunidades efetivas. (Comparam-se, no entanto, melhor com os dos países vizinhos.) A criação de colonatos na Cisjordânia (nem parada pelos bem-intencionados Yitzak Rabin, Shimon Peres ou Ariel Sharon) é um atentado à possibilidade de paz.
Mas não é o tratamento aos palestinianos que indigna a esquerda pró-Palestina. Tanto que não se incomodam com o Egito, muito alegremente impedindo a circulação dos palestinianos de Gaza no seu território. Queixam-se do bloqueio a Gaza só como retórica anti-Israel; afinal o bloqueio é tão eficaz que lá entra armamento em barda; e Gaza tem uma fronteira com o Egito, país soberano e não às ordens de Israel. (Um polícia egípcio matou turistas israelitas já depois do ataque do Hamas, para demonstrar a simpatia do país pela causa palestiniana – desde que essa fique do lado de lá da fronteira.)
A liderança corrupta e incompetente da Fatah não os move. O terrorismo do Hamas e as ligações ao Irão também não. Os líderes do Hamas vivendo luxuosamente no Qatar (agora a tentar resolver a crise dos reféns israelitas, não vá a comunidade internacional cair-lhe em cima), longe da população pobre que governam – está tudo bem para a esquerda, oh tão preocupada com os palestinianos. O uso de escudos humanos da sua própria população pelo Hamas, presumo que julguem ideia genial. (Israel nunca o faria à sua população e os tribunais proibiram o uso de escudos humanos palestinianos.)
A total ausência de solidariedade dos países islâmicos com os palestinianos de Gaza – em perigo com a resposta de Israel – também lhes é pacífica. Não houve nenhum movimento para organizarem a saída de refugiados civis de Gaza pela fronteira com o Egito e acolhimento pelos países do Médio Oriente. Mas isso não faz mal. Só o possível corte da ajuda humanitária da União Europeia (muita dela desviada) é que os agita.
A necessidade de defesa de Israel para sobreviver – invadido várias vezes por todos os vizinhos, inclusive a seguir à independência; alvo de terrorismo continuado durante décadas; sem existência reconhecida por vizinhos e Hamas – é irrelevante. Os minimalistas Acordos de Oslo não terem produzido efeito, o Roadmap de Bush (o primeiro plano americano com a solução de dois Estados) ter sido recusado pelos palestinianos e os esforços de Obama para uma paz negociada se terem esfumado em menos de nada, mostrando uma continuada inflexibilidade palestiniana para um acordo de paz, bem, quem quer saber dessas picuinhices?
A indignação da esquerda pró-Palestina é muito seletiva. Pior: convive muito bem com o terrorismo mais cruel e degradante, quando é dirigido aos alvos de estimação. Uma esquerda que não cumpre critérios de decência para configurar em qualquer solução governativa. O PS que atente.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico