Quem quer morrer por um capricho de Trump?
Apartir de Estátua de Gelo
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Todas as passagens de ano nos entregamos ao ritual de tentar adivinhar o futuro. Desde 2003, muitos foram os anos para os quais se se previu que os EUA e o Irão iriam entrar em guerra. Logo a começar 2020, para o qual houve poucas previsões dessas, Donald Trump mandou assassinar Qasem Souleimany, general de uma milícia estatal iraniana usada para interferir na política de vários países vizinhos, e nunca estivemos tão perto da possibilidade de um conflito entre os EUA e o Irão como hoje.
Mas precisamente por tantas previsões em anos passados terem falhado, convém ser cauteloso nas previsões. Não sabemos se o Irão vai retaliar de forma a escalar o conflito ou se irá antes aproveitar politicamente a ocasião para se reforçar internamente e vitimizar externamente. O meu palpite — que não passa disso — é que um conflito direto em larga escala não interessa ao Irão nem aos EUA e que após um período de tensão ambos os países evitarão arriscar uma guerra declarada.
Em vez de fazer futurologia é mais útil pensarmos no que já sabemos do que se passou e, em particular, do que não se passou neste ataque. A última parte é mais fácil e também, em meu entender, mais relevante: o que não se passou foi qualquer comunicação entre a administração Trump e os seus teoricamente aliados europeus. Tanto quanto se sabe, nenhum outro governo da NATO o da União Europeia foi alertado para um ataque e tal magnitude geopolítica — nem sequer o governo do Reino Unido.
Podemos fazer todas as análises que quisermos à hipótese de a NATO estar ou não obsoleta. Mas há silêncios que falam muito mais do que as palavras, e este é um deles.
Em caso de retaliação iraniana sobre os EUA, os outros países da NATO incorreriam nas obrigações do famoso Artigo 5 do Tratado do Atlântico Norte que determina que um ataque a um aliado é um ataque a todos os países. Só que o grau de confiança mútua que é preciso ter para aceitar uma responsabilidade recíproca desse género implica, porém, acreditar na sensatez e previsibilidade das lideranças dos aliados. Ora, só um líder europeu que não estivesse bom da cabeça poria hoje as mãos no fogo por Trump. E se não confiam nele, quem pode estar disposto a pagar o preço do aventureirismo do presidente dos EUA?
Caso especialmente interessante é o do primeiro-ministro britânico. A passar férias numa estância do Caribe, Boris Johnson ainda não se pronunciou sobre o ataque norte-americano em solo iraquiano, o que permitiu aos seus ministros produzirem declarações desencontradas sobre o assunto, ora primeiro mais alinhados com outros governos europeus, ora evidenciando um total alinhamento com Trump a seguir. A menos de um mês do “Brexit”, o Reino Unido tem agora uma escolha complicada. Se opta por uma colagem a Donald Trump, pode ver-se envolvido como parte beligerante numa guerra sobre a qual não teve sequer direito a uma palavrinha. Se se distancia do presidente norte-americano, conhecido pelo seu espírito vingativo são postas em risco as possibilidades de um acordo comercial com os EUA que foram propagandeadas como sendo uma das poucas vantagens da saída da União Europeia.
Já por algumas vezes nesta coluna argumentei que a principal incógnita do “pós-Brexit” é saber de quem vai o Reino Unido tornar-se um país-satélite: se dos EUA ou da UE. Com uma crise iraniana no horizonte, somos capazes de vir a saber a resposta para esse enigma mais depressa do que antes pensávamos.
Mas a União Europeia não tem um dilema menor. A Europa e os EUA estão amarrados por laços históricos de um ciclo — o do pós-guerra — em larga medida encerrado. Mas se com George W. Bush já tinha ficado claro o desalinhamento de interesses e até de valores entre os dois lados do Atlântico, com Trump passamos a ter um presidente dos EUA que não hesita em arriscar um conflito em larga escala na Eurásia sem dedicar a cortesia de um aviso prévio aos europeus. A conclusão é clara: a Europa precisa de ter autonomia estratégica em relação aos EUA, e na Europa só através da UE existe a possibilidade de se acrescentar autonomia estratégica geopolítica às outras áreas em que a Europa já é uma espécie de “super-potência invisível”, como nas negociações comerciais ou na regulação da globalização. E para nos convencermos da urgência desse debate — e um debate muito difícil, reconheçamo-lo — não é sequer preciso que os EUA entrem em guerra declarada com o Irão.
Há talvez a possibilidade de Trump perder as eleições em novembro deste ano, e que com um democrata na Casa Branca o desalinhamento euro-americano se disfarce. Mas mesmo isso não é garantido. Joe Biden, que votou a favor da Guerra do Iraque, tem um historial intervencionista em política externa. A não ser que viéssemos a ter um Presidente Sanders ou uma Presidente Warren e, com eles, a hipótese de reforçar as Nações Unidas como plataforma multilateral de resolução de conflitos, a Europa ficaria sempre dependente das decisões de presidentes dos EUA que cada vez menos querem saber dos europeus. No caso de Trump, essas decisões parecem fundamentar-se em caprichos. A pergunta para os europeus é simples: quem no seu perfeito juízo quer morrer em nome de um capricho de Trump?