Políticos malabaristas de palavras e de falsas verdades
Antes de comentar casos concretos parece-me pertinente fazer aqui uma reflexão sobre o discurso utilizado pela generalidade dos políticos sem distinção de partidos ou de ideologias que, quase sempre, nos apresentam discursos alternativos à sua medida cuja veracidade não passa por uma verificação da realidade e que são incompreendidos pela maioria dos cidadãos comuns.
Normalmente tomamos como sendo realidade coisas ou factos que julgamos serem reais, ou quando nos referimos à sua natureza real, em lugar de ideias imaginadas, inventadas ou teóricas. Ao contrário os políticos muitas vezes usam argumentos construídos em torno do contra factual, por vezes enviesados e com uma visão imaginada como se de uma realidade alternativa se tratasse.
Especialistas em política, interventores políticos, partidos e comentadores criam as suas narrativas e expõem realidades alternativas e não factuais o que, infelizmente, costuma levar a erros de compreensão por quem os escuta. Os que se concentram numa linguagem especificamente política e muito elaborada preocupam-se a sua ideologia partidária e em mistificar e distorcer as realidades. Os mais perspicazes negam que utilizem linguagem distorcida e de falta à verdade, embora o uso duma linguagem distorcida possa ser útil como evocação dos seus referenciais partidários e ideológicos. Todavia a maioria com menos cultura e iliteracia política consideram a linguagem política como sendo distorcida ou mistificadora o que no conduz à desconfiança da verdade da narrativa dos políticos.
A verdade na política tem sido um tema intensamente debatido ao longo do tempo. A relação entre verdade e política revela-se um dos problemas mais prementes do nosso tempo, sobretudo por ter como alvo os políticos que se acusam mutuamente da sua falta à verdade. Isto devido ao pano de fundo das crises das democracias ocidentais, à ascensão mundial do populismo e ao aparente aumento de mentiras, notícias falsas e propaganda. Em Portugal o discurso político parece ser dominado por uma quantidade quase incontrolável de meias “verdades” que alguns tentam passar por verdade confundindo a opinião pública.
Inverdades, no sentido de mentiras ou inexatidões, proferidas por políticos ou pelo poder são seguidas por ataques nas lutas partidárias e são usadas pelo ou contra o poder político. A verdade em política pode não corresponder à exatidão, ao rigor e à precisão, mas ela existe, independentemente de a querermos ou não, de estarmos de acordo com ela ou não.
Todavia a veracidade é a exatidão duma afirmação e verifica.se quando se apresenta a precisão de algum assunto, facto, declaração, ou outras questões, para que esteja em conformidade com uma suposta verdade. A veracidade é, assim, a pré-condição para a apuração da verdade em política. Isto é, um discurso de campanha passa sem a necessidade de declarar a própria credibilidade e confiabilidade do candidato, mas salientam-se as mentiras e as falsas promessas dos seus adversários políticos.
Cada um de nós interpreta a realidade conforme os filtros de crenças, experiências e vivências individuais, que vêm antes da interpretação da realidade, criamos assim a nossa própria verdade pessoal.
Feitas estas considerações podemos centrar-nos nos discursos que os políticos manifestam, com os quais entram em contato com o eleitorado, interferindo de certa forma nas suas opiniões pelo que devemos salientar a importância da compreensão das suas construções discursivas.
Como exemplo saliento o caso de Paulo Rangel do PSD que é, para mim, um perito na reescrita da realidade. Ele transforma uma realidade numa outra, sem aparente contradição, dado o seu talento excecional para construir argumentações com retóricas demagógicas, por vezes falaciosas e, por isso, devemos estar atentos e preparados quando o ouvimos ou lemos as suas narrativas.
Rangel tem o condão de ser uma espécie de embusteiro da política via argumentações por meio de retóricas contorcionistas. Dá a volta a tudo sem convencer ninguém, é um artista do malabarismo da retórica. Isto é, usa técnicas de construção de sofismas para ludibriar e convencer quem o ouve. A formulação das suas opiniões podem ser uma farsa quando a informação sobre os factos não está garantida e se os próprios factos não forem trazidos ao debate onde intervem. Isto é, a verdade de um facto fornece informações ao pensamento político, mas uma verdade concebida apenas pela razão fornece somente especulações mais ou menos filosóficas.
Se compararmos a linguagem científica que visa a precisão e o rigor na representação da realidade com a linguagem política verificamos que esta última tem propósitos diferentes como a persuasão, a influência e a dinâmica de poder.
Numa análise elementar de algumas das suas mais recentes intervenções que retive no dia 12 de abril na Assembleia da República Rangel afirmou que “a herança que o anterior Governo nos deixa, apesar do alarido com o excedente, é uma herança pesada” e que esconde um “Estado Social em estado de liquidação”. Se o Estado Social estava em liquidação faltou a Rangel e ao atual Governo dizer como vai proceder para o recuperar resolver. As afirmações de Rangel foram apenas o mote para desculpabilização do Governo de Luís Montenegro caso não consiga melhorar o Estado Social, assim como da impossibilidade do atual Governo executar as promessas durante a campanha eleitoral sem fazer derrapar as contas certas que o Governo anterior deixou.
Outro exemplo do malabarismo das palavras e da sua veracidade intrínseca poderíamos começar a analisar as frases várias vezes proferidas por Montenegro sobre os 1500 milhões da descida do IRS entre outras matérias, assim como intervenções de vários dirigentes partidários e comentadores políticos em debates e confrontos partidários.
No primeiro dia de discussão do programa do Governo e sobre o IRS o Primeiro-Ministro achou ter sido claro. Mas não foi: disse que a sua proposta de lei ia “perfazer uma diminuição global de cerca de 1.500 milhões de euros nos impostos sobre o trabalho dos portugueses face ao ano passado.”. Estas palavras foram ditas.
Ainda sobre o choque fiscal começo com um bordão, isto é, palavra esvaziada de sentido e sem função morfossintática, como forma de apoio em momentos de hesitação, como o que Rangel usa quando rebate um seu adversário começando por ora vamos lá ver. Se Luís Montenegro garante que não enganou ninguém, então foi porque teve a sua base o Orçamento para 2024 do Governo PS. Todavia, em entrevista à RTP o ministro das Finanças Miranda Sarmento clarificou que os 1.500 milhões de euros de alívio no IRS referidos pelo primeiro-ministro, no início do debate do programa do Governo, não vão somar-se aos cerca de 1.300 milhões de euros de redução do IRS inscritos no OE para 2024, rondando assim os 200 milhões. A confusão das várias narrativas é bem clara!
Para outro exemplo selecionei afirmações de André Ventura que criticou e classificou de “malabarismos políticos” os discursos de outros partidos para tentarem “isolar o Chega” após as eleições, ou quando o presidente do Chega afirmou que o seu partido é “o único contra o sistema de interesses”, criticando as “elites que governam o país há 47 anos” frase muito cara aos populistas.
O populismo considera a sociedade separada em dois grupos homogéneos e antagónicos: “o povo puro” e a “elite corrupta”, e ainda que a política deve ser uma expressão da vontade geral do povo se utilizarmos a definição de Cas Mudde, especialista em extremismo político e populismo na Europa e nos Estados Unidos, professor da Universidade da Georgia.
Há ainda os que, como Luís Montenegro, proferem frases e discursos pelo absurdo como o que passou acusando o PS de estar a entender-se com o Chega, o que aconteceu quando na Assembleia da República as propostas do PS, Bloco e PCP para o IRS foram aprovadas, na generalidade, com os votos da esquerda e a abstenção do Chega.
A intervenção de Montenegro não foi mais do que pura tática política de campanha contra o PS. Se prestarmos atenção a esta afirmação de Montenegro torna-se claro que pretende seja passada como como verdade uma inverdade e uma impossibilidade política no atual contexto. Disse ainda Montenegro que “a ideia do PS e do Chega é simularem uma oposição ao Governo fazendo um governo alternativo, então vão ter de assumir isso olhos nos olhos dos portugueses.” Este é manifestamente um símbolo de impossibilidade porque bem sabemos que não existe, e que não existirá, nenhuma espécie de entendimento ou estratégia concertada entre o PS e o Chega. Montenegro toma a parte pelo todo. Em democracia é legitimo que um partido vote num sentido, ou noutro diferente, ou acompanhe o sentido de voto de outro partido o que não significa que haja qualquer aliança, mas apenas uma aproximação de pontos de vista em assuntos específicos, mesmo que seja por motivo oportunista da parte de uma deles.
Isto leva-nos à conclusão de que na política, a linguagem pode ser mistificada ou deliberadamente tornada complexa para criar uma aura de saber e convicção muitas vezes com apelo emocional e gestos exagerados para influenciar opiniões, veja-se o caso de André Ventura nas suas intervenções na Assembleia da República.
Outro malabarista é Hugo Soares, líder da bancada da AD na Assembleia da República, este sem comparação com o nível argumentativo de Paulo Rangel. Hugo Soares é outra espécie de demagogo cujas intervenções ao atirar para o ar ideias esgotadas são como reflexos dum espelho quebrado.
Hugo Soares responsabilizava, em março de 2024 antes das eleições, o PS pela degradação e falta de investimento nos serviços públicos. Disse então o cabeça de lista pelo círculo eleitoral do distrito de Braga da candidatura da Aliança Democrática (AD) numa reunião em Braga que “o PS era o responsável pela degradação e falta de investimento nos serviços públicos”.
Justificado pela dita “degradação dos serviços públicos”, “do SNS às escolas, dos tribunais às forças de segurança”, segundo o PS o que estaria em causa era colocar em marcha as intenções da AD no que respeita ao Estado Social, não para o manter, melhorar e fazer melhor, mas para, o debilitar ainda mais.
Hugo Soares continuava a sua tese falando da “habitação e do desemprego jovem, da precariedade e do êxodo dos jovens”. Em suma, segundo ele “o Estado Social parece agora em estado de liquidação”, mas nada diz como o vai melhorar. Logo, digo eu, é o mesmo que estar a dizer que teria de acabar ou reduzir o dito Estado social porque o Governo AD não iria ter capacidade para a sua resolução nem o poderia alterar porque iria arrombar com as contas públicas certas. Lembremo-nos que o PSD na oposição dizia que o Governo deveria fazer e gastar mais. Hugo Soares um “passista” ferrugento um primitivo de Passos Coelho que em 2012 lançou para a praça pública a frase do seu ídolo Passos que justificava a “maior austeridade com herança mais pesada” herdada do PS.
A coligação AD, na impossibilidade de conseguir cumprir e alterar o que criticou e prometia na oposição, sabendo já da possibilidade do incumprimento das promessas durante a campanha eleitoral lança para a frente o estribilho da “pesada herança”. É um déjà vu do PSD. Passados 12 anos esta retórica já não pega, arranjem outra!
A tentativa de colar o PS ao despesismo é uma falacia que para a coligação AD serve, à falta de melhor, para tudo, até para o disparate. Se o PSD queria o poder então a sua missão não é falar de heranças pesadas ou não, é resolver o que disse que faria com o que estava mal e propor o que pode e como fazer melhor.
A questão que se levanta é a de saber se agora a austeridade virá sem herança pesada (terão que inventá-la), ou se irão seguir a estratégia do passado com desonestidade para justificarem a impossibilidade do cumprimento das promessas que fizeram sem saberem as contas que iriam encontrar ou, então, concordavam com as contas certas e com as cativações que tantas vezes criticaram.
Estranha-se também é que o PSD, quando na oposição, atacasse o ministro das finanças do Governo PS pelas cativações de verbas que serviam como almofada em caso de emergência e agora queixa-se de não haver verbas. Protestava então o PSD acusando o Governo da altura de “falsear o debate orçamental” através de “cativações recorde”, e desafiava o ministro das Finanças a esclarecer onde ia congelar despesa no próximo ano.
A velha estratégia aí está, porque demagogia e desonestidade política andam a para e não têm limites quando servem para lançar a confusão política com as suas verdades alternativas criadas ou a criar por este Governo, que comprovam a evidência de que está com dificuldades, quiçá em desespero, pela impossibilidade de não conseguir cumprir as promessas eleitorais. Assim, o Governo AD, pela voz do atual ministro das finanças Miranda Sarmento, veio dizer que as contas públicas “estão bastante pior”, mas ex-ministro das Finanças Fernando Medina garante que país “não tem” problemas orçamentais e acusa o atual ministro de “profunda impreparação técnica” e de “usar a falsidade como arma de combate político” e garante que “o país não tem qualquer problema orçamental”. Assegurou ainda que “todas as despesas” que autorizou “cabem no orçamento” e garante que o país “não tem qualquer problema orçamental”.
Começa a ser evidente um padrão que começa a ser facilmente reconhecido e que é atributo da direita quando chega ao poder e tem o costume de anunciar de forma veemente que as contas não estão bem e logo de seguida parte para políticas de austeridade. Isto não é novidade e aconteceu várias vezes. A dificuldade está na mudança que está a dificultar o uso daquela estratégia a que o ministro das finanças e o Governo chefiado por Montenegro não deu a devida importância.
No que se refere às finanças o resultado é reconhecido por várias entidades que sabem o que dizem sobre têm uma palavra a dizer nessa matéria. Luís Montenegro e Miranda Sarmento querem passar a mensagem e fazer de conta que isso não aconteceu para lançarem a mesma narrativa em que gritam aos quatro ventos das contas públicas numa desgraça para depois dizer que “somos nós que temos de resolver.” A linha é a mesma de quando em 2011 o então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho afirmou perante o Conselho Nacional do PSD que o seu Governo encontrou um “desvio colossal em relação às metas estabelecidas” para as contas públicas. O atual Governo pretende reconstruir esta falsa realidade através de uma verdade alternativa para enganar os portugueses.
Há outras narrativas que e o atual Governo pretende distorcer inventando novas realidades e factos na forma e no conteúdo. Estão nesta linha o caso de o Governo exonerar a provedora da Santa Casa da Misericórdia e o que levou à demissão de Fernando Araújo, Diretor Executivo do Serviço Nacional de Saúde e outros casos se seguirão.
Segundo o jornal Público a Ministra da Saúde “contava estar a iniciar trabalhos do Plano de Inverno e volta a responsabilizar Araújo Ana Paula Martins admitiu que ‘os planos sazonais de saúde pública são da Direcção-Geral da Saúde (DGS), por causa das ondas de calor, das ondas de frio, e são sempre feitos pela DGS e assim continuará’. Contudo, considera que, face ao estatuto que define as competências e atribuições da DE-SNS, ‘é muito claro que a articulação da malha da rede que neste momento são as unidades locais de saúde, ou seja, integram os nossos centros hospitalares e os cuidados de saúde primários, é naturalmente competência do senhor diretor executivo e da sua equipa’, defendeu, numa crítica à decisão de Fernando Araújo”. Segundo parece é mais uma verdade não factual apresentada pela atual ministra da saúde.
No passado recente temos o caso do ex-bastonário da Ordem do Médicos, Miguel, Guimarães, que estava na linha da frente do ataque ao SNS com comentários pouco abonatórios como um elemento de oposição ao Governo ao jeito de campanha ao seu partido, o que deu os seus frutos porque é agora deputado pela AD. O que não se conhece é como este Governo, conforme prometeu, irá no prazo de sessenta dias resolver os problemas que apontava existiam no SNS, mas receia-se o pior.
A esquerda conseguiu aprovar as suas propostas de redução do IRS contra a do PSD. A antecipação de que a proposta de lei do Governo arriscava ficar pelo caminho se fosse a votos veio por uma intervenção de André Ventura que criticou o executivo por ter apresentado a proposta “sem negociar”, questionando-se: “Espelho meu, espelho meu, quem engana mais os portugueses do que eu?”
Como afirmam os populistas estes factos demonstram que há um distanciamento entre a classe política, as elites e a população em geral. Escrever ou dizer coisas polémicas parece ser o que está a dar para se ser um político sério e responsável. Não sei se ser jovem e ser polémico não terá sido o que serviu de legitimação para a escolha de Sebastião Bugalho para cabeça pela AD de lista nas eleições europeias.
Por outro lado, a embalagem muito bonita do Chega com o programa e as promessas que defende está tudo muito bem embrulhada. Ao que me parece as afirmações recentes de Passos Coelho levam para a tendência de acordos com o partido Chega. Parece que segundo uma newsletter de Ana Sá Lopes no Público “Passos tenta ensinar Montenegro a governar”.
Não me recordo quem escreveu “que é legitimo e mesmo útil uma aliança e mesmo o governo do seu partido com o diabo que chegou. No inferno do governo deviam era estar lá eles todos. Seria, no entanto, juntar a fome com a vontade de comer, os outros morreriam esfomeados. Está mal. Não concordo. O erro dele é preferir um voto eleitoral legitimo, mas ignorar os dislates de quem se abraça”.
Há que confrontar os factos com as verdades e as verdades alternativas criada pelos políticos fora ou dentro do Governo para iludir os potenciais eleitores.