As pessoas sabem o que lhes faz falta e usam bem o apoio que recebem, independentemente da forma. Dispensam o paternalismo de Ventura.
O pacote “Famílias Primeiro” tem muito para ser criticado. Em vez de concentrar os euros em quem mais precisa, dando-lhes mais, espalha dinheiro sem olhar a quem, dando pouco a cada um. Nem todos enfrentamos a mesma inflação porque consumimos de maneira diferente. Segundo os dados mais recentes do INE, a alimentação subiu 16,4% e os custos com habitação e energia subiram 14,6% entre setembro de 2021 e setembro de 2022. Por isso, quem concentra a maior parte do seu orçamento no mais essencial, porque não tem espaço para o supérfluo, enfrenta uma taxa de inflação superior à de 9,3%, que é a do consumidor médio.
Depois, os apoios são injustos porque não consideram o número de bocas para alimentar, nem o número de mãos que trabalham em cada casa. Uma família monoparental recebe menos do que uma família com dois adultos, com o mesmo número de crianças. Acresce que estes apoios simultâneos podem ter efeitos inesperados, como o aumento dos preços devido à corrida às compras documentado no artigo “The first of the month effect”, publicado no American Economic Journal em 2010.
O outro problema é que o pacote não existe no Orçamento do Estado para 2023. O Indexante de Apoios Sociais é atualizado à taxa de inflação – só que, lá está, as pessoas que recebem apoios sociais têm uma taxa de inflação superior à oficial. Podíamos, até, conceber um sistema de apoios que ao longo dos próximos meses (pelo menos, durante o inverno) distribuía transferências apenas às famílias mais necessitadas do país em quinzenas alternadas, para evitar o “first of the month effect”.
No meio de tanto por onde pegar, André Ventura, em entrevista ao Observador, com o seu talento para gastar tempo e atenção com problemas que não o são, concentrou-se na possibilidade de os apoios servirem “para garrafas de Jameson e Grant’s”. Numa espécie de densificação da indignação, Ventura alerta: “Não é só whisky – é droga e coisas desse género.” A densificação proposta resulta de uma fonte documental de qualidade conhecida no que toca à compra de droga e whisky, como explica Ventura: “Sabemos, até por força dos relatórios escolares (...) que ficam com esse dinheiro para eles (...) para consumos impróprios, de tabaco e de álcool.” Isto para “muitas famílias de rendimentos mais baixos”, claro: toda a gente sabe que, se soubessem gastar bem o dinheiro, não eram pobres.
Quando estudámos o padrão de consumo das famílias para escrever o nosso relatório Despesas essenciais e rendimento das famílias: os efeitos assimétricos da inflação, a Mariana Esteves, o Bruno P. Carvalho e eu tivemos de nos cingir aos dados do Inquérito às Despesas das Famílias 2015/2016, os últimos disponíveis para analisar orçamentos familiares. Não imaginávamos que os “relatórios escolares” constituíam uma importante fonte de informação sobre padrões de consumo, com a vantagem de serem anuais e não termos de esperar vários anos por um inquérito representativo feito do INE. Para a próxima, perguntamos ao deputado.
André Ventura tenciona fiscalizar como as pessoas vão gastar o dinheiro, uma tarefa impossível, porque o dinheiro é fungível. A não ser que se proíba a venda de whisky. A alternativa de obrigar quem recebeu apoios do Estado a transportar ao peito um pin com uma garrafa de Jameson’s e uma folha de marijuana, como quem diz “recebo apoios do Governo e sou drogado”, não funciona, porque os malandros podem dar o dinheiro a um amigo sem pin para terem na mesma acesso ao produto interdito. A alternativa de dar apoios em vales também não funciona, porque os malandros podem vender os vales a um amigo para o orçamento mensal de comida e, com o dinheiro, comprar garrafas de Jameson’s. Nem assim o deputado Ventura dormiria descansado.
Já agora, um artigo de 2013 do Journal of Development Economics analisa uma experiência no Equador, em que as famílias recebem cabazes de comida, vales para comprar comida, ou dinheiro (livre, sem regras para ser gasto). A atribuição é aleatória, para avaliar os efeitos das diferentes alternativas. Os autores concluem que, em qualquer dos casos, a quantidade e a qualidade da alimentação das famílias melhoram significativamente. Embora o contexto português seja diferente, com menos insegurança alimentar do que as famílias do Equador que participaram nesta experiência, há uma lição que podemos tirar: as pessoas sabem o que lhes faz falta e usam bem o apoio que recebem, independentemente da forma. Dispensam o paternalismo de Ventura.
O deputado afirma pomposamente que vai “pedir um reforço de 30 milhões de euros para os mecanismos de fiscalização do Estado para garantir que este dinheiro é usado de forma efetiva nas ajudas à família, e não em desperdícios em álcool, em droga e em tabaco”. Sendo a tarefa de fiscalização impossível, nem com 30, nem com 300 milhões Ventura consegue fiscalizar o que quer que seja. Quer apenas desperdiçar o nosso dinheiro, contrariamente a quem usa os apoios para comprar álcool, droga e tabaco, que não tem menos direito do que qualquer um de nós a esses pequenos luxos.
Através dos tais relatórios escolares, Ventura sabe que as pessoas “se apropriam” do dinheiro, em vez de “apoiarem os filhos”. Aliás, assegura o deputado, “já há vários casos desses em Portugal”. Quantos? Estranhamente, Ventura não diz. Os jornalistas perguntam-lhe então: “Que famílias é que se aproveitam dos filhos?” Chegou o grande momento. É que, em toda a entrevista, Ventura vende tão bem a ideia de que os pobres são pessoas diferentes das outras pessoas, se são pobres é porque não sabem tomar decisões, que se estava mesmo a ver onde queria chegar. E chega. Responde assim: “Todas. Não quero referir os ciganos.” Ai quer, quer. Por isso é que refere.
A Agência da União Europeia para os Direitos Fundamentais publicou esta semana um relatório sobre as populações ciganas na Europa. Em Portugal, foram conduzidas 568 entrevistas, representando um total de 1439 membros dos agregados familiares respetivos. Ficámos a saber que 96% destas pessoas vivem na pobreza e 59% em privação material severa. Mais de dois terços vivem em casas sem luz, húmidas e sem casa de banho. Só metade conhece instituições que defendem os seus direitos, apenas 17% confiam no sistema judicial e pouco mais de um quarto na polícia. Sem confiança numa sociedade que os exclui, uns meros 7% reportam incidentes de discriminação.
Apenas 38% das pessoas ciganas portuguesas entre os 20 e os 64 anos declaram ter rendimentos de trabalho. Ventura tem uma explicação para isto, que deve ter lido nos relatórios escolares: a subsidiodependência e tal. Mas está outra vez enganado. A verdade é esta: em Portugal, 81% das pessoas ciganas com mais de 16 anos declararam ter sido discriminadas devido à sua etnia na procura de trabalho, nos últimos 12 meses. É o valor mais alto dos países analisados. Contrariamente ao que André Ventura aprende nos “relatórios escolares”, não somos nós, “os portugueses de bem”, que não consumimos whisky nem drogas, que somos vítimas da comunidade cigana. É a comunidade cigana que é vítima desta sociedade que a exclui.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico