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A Propósito de Quase Tudo: opiniões, factos, política, sociedade, comunicação

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O mundo kafkiano na política, no social e na justiça

16.08.24 | Manuel_AR

Kafka política e justiça.png

Li há alguns anos o livro “O Processo” de Franz Kafka. A releitura deste livro deixou-me apreensivo pela associação que fiz às realidades que estamos a viver em Portugal e no Mundo que mais parece um mundo kafkiano.

Transcrevo, como introdução a este texto, o início do primeiro capítulo que começa assim:

 “Alguém devia ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal. A cozinheira da Senhora Grubach, a dona da pensão, que lhe levava o pequeno-almoço todos os dias por volta das oito horas, não apareceu desta vez. Isto nunca tinha acontecido. K. aguardou mais um pouco; apoiado na almofada da cama, viu a velha senhora que morava em frente da sua casa a observá-lo com uma curiosidade completamente inacostumada; mas depois, sob o efeito simultâneo da surpresa e da fome, tocou a campainha. Bateram logo à porta e entrou um homem que ele nunca vira naquela casa. Era esbelto e, no entanto, de constituição sólida, trajava um fato preto muito justo que, à semelhança dos fatos de viagem, possuía diversas pregas, algibeiras, botões e um cinto, em consequência do que, sem que se conseguisse designar-lhe o uso, parecia particularmente prático. – Quem é o senhor? – perguntou K., soerguendo-se na cama. Mas o homem ignorou a pergunta, como se fosse obrigatório aceitar a sua aparição e respondeu simplesmente: – Chamou alguém?”

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“Através da janela aberta, ainda se avistava a velha senhora que, com uma curiosidade deveras senil, se havia aproximado da janela, agora mesmo em frente, para continuar a observar tudo.

– Vou dizer à Senhora Grubach... – principiou K., parecendo fugir à influência dos dois homens, todavia a boa distância dele, e quis avançar.

– Não – disse o homem próximo da janela, atirando o livro para cima de uma mesa e levantando-se. – O senhor não tem o direito de ir-se embora, porque está detido.

– Tem todo o ar disso – retorquiu K. – Mas então porquê? – perguntou em seguida.

– Não fomos encarregues de lho dizer. Vá para o seu quarto e espere. O processo judicial acaba de ser instaurado, e saberá tudo na altura oportuna. Ultrapasso a minha missão ao falar-lhe tão amistosamente. Mas espero que ninguém, exceto Franz, me ouça, e aliás também ele o trata simpaticamente, à revelia do regulamento. Se continuar a ter tanta sorte como para a designação dos seus guardas, pode ficar sossegado.”

Vivemos numa espécie de mundo “kafkiano” pelas situações por vezes desconcertantes e absurdas dum sistema complexo que mais parece ser irracional. O termo “kafkiano” entrou na linguagem para descrever experiências desnecessariamente complicada e frustrantes, como o de ser forçado a penetrar nos infinitos labirintos dos partidos, da política, da justiça, das decisões dos governos, das opiniões dos comentadores. Falemos também do acesso aos serviços públicos, seja eles da saúde ou quaisquer outros, sucessivamente ocupados e inacessíveis devido à afluência dos que, em enxurrada, entram indiscriminadamente no nosso país e a eles pretendem ter acesso.  

O que se passa é a existência de uma associação da tendência da história com a dimensão social. Há tendências na sucessão dos acontecimentos no decurso da história atual que reproduzem uma ampla dimensão social e política do mundo kafkiano. Partidos com uma progressiva concentração de poder, como é o caso da Rússia, o que também está a acontecer na Hungria e noutros países vão paulatinamente a caminho duma distopia referida como uma representação ou descrição de uma sociedade onde prevalecem condições de vida opressivas, autoritárias e desumanas e é um termo utilizado na literatura e no cinema de ficção onde se criticam aspetos negativos da sociedade atual.

Nas últimas eleições na U.E. verificou-se uma manutenção e mesmo algum crescimento de partidos tendencialmente populistas e de extrema-direita cujos princípios têm alguma dose de pré-autocratismo.

Em 2022 foi aprovado na U.E. um texto que revelava a “falta duma ação decisiva que contribuiu para o surgimento de um “regime híbrido de autocracia eleitoral”, ou seja, um sistema constitucional em que as eleições ocorrem, mas onde não há respeito pelas normas e padrões democráticos com tendência para o endeusamento dos governantes. Veja o atual caso do resultado das eleições na Venezuela as quais o PCP, astuciosamente, defende com argumentos demasiado rebuscados responsabilizando a interferência estrangeira no país. Simplesmente anedótico!

Os Estados totalitários, como concentrações extremas dessas tendências de endeusamento trouxeram à tona a estreita relação entre o romance de Kafka e a vida real. No Ocidente as pessoas não se apercebem da realidade desta relação. O processo de Kafka é apenas um exagero, uma hipérbole imaginária que pretende fazer uma aproximação a um Estado totalitário onde a realidade está presente dado o crescimento de partidos, como atrás referi, populistas e de extrema-direita cujos princípios sugerem alguma dose de pré-autocratismo.

O Mundo vive uma complexidade multifacetada e acelerada de mudanças nas relações ao nível político, social, económico e de valores a que, ao longo dos anos, não fomos acostumados e adaptados, e, para as quais não fomos preparados, e que os órgãos de comunicação social, os denominados media, não se encarregado de alertar as populações.

Os noticiários televisivos, os mais consumidos, bombardeiam as populações com crises sistemáticas, sejam económicas, climáticas, sociais, políticas e conflitos bélicos a que se junta a proliferação de comentadores de política, listas infindáveis de opiniões nos diários, semanários e nas televisões confundem os espectadores mais leigos da observação e análise política com os mais variados pontos de vista, muitos deles até contraditórios.

Pedro Adão e Silva escreveu no jornal Público que “Portugal é hoje, provavelmente, a democracia ocidental com o rácio mais elevado de canais noticiosos por habitante. Tornou-se difícil contabilizar o número de canais a emitir notícias 24 horas por dia, sem que se perceba a racionalidade económica, o propósito para o posicionamento das marcas e em que é que se pode diferenciar a oferta.”

Para acompanharmos todos os temas de política que nos impingem a toda a hora seria necessário ficar horas a fio frente ao televisor e quem tem “box” recuperar as muitas dezenas de programas a visualizar. Os temas são múltiplos o que torna impossível acompanhá-los a todos sejam eles economia, mudanças climáticas, conflitos armados, migrações, extremismos e radicalizações, governação, corrupção, entre muitos outros.

As informações que nos chegam, mesmo as provenientes de órgãos de comunicação, não nos garantem que sejam de fidelidade absoluta, nem que sejam premeditadamente falsas, como o que se passa em países de democracias duvidosas onde a distorção de informação e difusão de propaganda são recorrentes, como é o caso da Rússia com narrativas falsas de apoio à guerra de agressão contra a Ucrânia. Nestas campanhas participam organismos governamentais ou organismos membros do Estado, seja na Rússia seja noutro qualquer país.

A desinformação que se propaga em vários países do mundo com as os mais variados objetivos baseia-se em páginas falsas na Web que usurpam a identidade de meios de comunicação social nacionais e de “sites” e páginas Web dos governos e contas falsas nas redes sociais.

A tentativas de desinformação e distorção da opinião pública com a alteração que pode ser intencional do significado ou circunstâncias de um facto não são raros.

Podemos associar, como suposição, neste âmbito, casos noticiados sobre a Procuradoria-Geral da República em várias situações de inquéritos, suspeições, escutas potencialmente exageradas que depois ficam sem que a opinião pública saiba o que de facto se passou nem como terminaram sem fim de tempo limite razoável.  Os casos das buscas na Madeira Miguel Albuquerque, o caso das buscas em casa de Rui Rio e na sede do PSD. Recorde-se ainda que um dos casos mais notáveis, entre outros, foi o da Operação Influencer, que levou à demissão do então Primeiro-Ministro António Costa, é o que tem gerado um intenso debate sobre a eficácia e a transparência do sistema judicial em Portugal e do funcionamento da Procuradoria-Geral da República são típicos de processos kafkiano.

O mundo de Kafka pertence a um universo primitivo, onde a culpa é uma espécie de pecado original em que quem é acusado nem sempre sabe porquê e em que toda a acusação é sempre uma falsidade só porque o personagem é logo acusado só porque diz sempre que a acusação é injusta e que se vai defender. Tal como na personagem do livro de Kafka os processos, a que as personagens públicas são submetidas, permanecem sempre pendentes. A causa jamais é explicitada, é sempre colocada na dúvida e mantém enquanto decorrem a eternidade das investigações.  Na verdade, nenhuma causa se torna mais suspeita quando terceiras pessoas pretendem obter através dos media e pedem através das redes sociais solidariedade para os “injustiçados”. Isto é, a tentativa de defesa já constitui uma suspeita que recai sobre suspeito como se já fosse réu!

O que por vezes se passa na justiça é que quando temos conhecimento pelos órgãos de comunicação social de políticos ou de figuras públicas que são constituídos arguidos por serem supostamente suspeitos, ou quando são presos passam por processos desconcertantes, no qual nem a causa da sua suspeição ou prisão, nem a natureza dos processos judiciais são claros para ele e para quem observa. A este tipo de situação podemos chamar processos “kafkianos” porque mais parecem ser processo próximos das características da obra de Kafka.

Tudo o que se está a passar no Mundo e em Portugal do que diz respeito à economia, sociedade, justiça, luta política para estar na emergência de um mundo kafkiano senão até distópico.