O direito à desconfiança
Ao longo do tempo transformei-me num cidadão muito desconfiado no que se refere à política e à justiça portuguesa, muito menos quando a linha que as separa é estreita. A comunicação social dá frequentemente cobertura a notícias ou opiniões onde se acusa ou ilibe através de provas presumivelmente factuais, mas que o não são, pelo que, sou levado a desconfiar de tudo quanto me pretendam "vender".
Raramente me tenho referido à prisão de José Sócrates porque nada tenho a comentar que seja merecedor de tal. Não me podem negar o direito de desconfiar o que certa imprensa e outros órgãos de comunicação têm noticiado e que são apresentados como sendo factos e provas, mas que mais não são do que insinuações que se fazem chegar aos jornais e aos canais de televisão por terceiros de acordo com uma agenda prévia.
Não sei se os crimes de que José Sócrates é indiciado e que têm saído para a opinião pública foram ou não praticados, os tribunais decidirão. Há indícios dizem, mas podem ser também uma narrativa que pretenda fornecer informação de natureza psicológica ou ideológica. Desconheço se tudo quanto veio a público, em ocasiões politicamente oportunas, estão ou não fundamentadas, e por aí fora.
Não importa se eu gosto ou não de Sócrates, se acho que possa ou não ser culpado, se defendo ou ataco o seu comportamento e atitudes, trata-se apenas e só de uma desconfiança quanto ao momento e a oportunidade política e judiciária durante o qual tem vindo a decorrer todo este processo.
A justiça faz-se través dos tribunais que são órgãos de soberania independentes e não podem guiar-se pelo tempo político. A justiça tem o seu próprio "timing" e, por isso, numa democracia exerce-se através dos tribunais. A principal função do poder judiciário é defender os direitos de cada cidadão, promovendo a justiça e resolvendo os prováveis conflitos que possam surgir na sociedade, através da investigação, apuramento, julgamento e punição.
Há demasiadas coincidências. Sócrates foi preso num momento em que decorria ao Congresso do Partido Socialista. Quando decorria a convenção do Partido Socialista para apresentação do seu programa eleitoral foram divulgadas "novidades" sobre o processo de Sócrates, dito em segredo de justiça.
Quando há algo que se deseja ser desviado da atenção da opinião pública lá se fazem chegar a alguns órgãos de comunicação social a tais "novidades" sobre o processo de José Sócrates.
Só quatro anos após a ida de José Sócrates para Paris e depois de notícias sobre a relação da vida que levava com os seus rendimentos, num momento especial da vida da política nacional, quase no fim do mandato do Governo e quando já se falava nas eleições legislativas e o PSD e o CDS estavam em baixo nas sondagens, veio atabalhoadamente a público, com informação prévia a uma certa televisão e a um certo jornal, a prisão de José Sócrates e, posteriormente, conjunto de atos ligados a ela ligados que têm vindo a dar continuidade jornalística ao caso.
Passei a ser desconfiado sobre tudo quanto se refira à política e à justiça, porque para mim deixou de haver coincidências.
Quem foi o cidadão comum que não acreditou no que dizia Passos Coelho antes de estar no Governo, e mesmo durante o mandato?
O caso Sócrates não é exceção para a minha desconfiança. É como um produto que me estão a vender e cuja embalagem ainda não abri para ver o que tem dentro, se apenas contem papel e espuma de polistireno ou se, em vez disso, algo valioso factual e consistente.
Por mais que o jornal X diga sobre determinada notícia "segundo documentos a que o jornal X teve acesso" ou coloque entre aspas o que alguém tenha dito, ou, ainda, o canal Y diga "segundo fontes a que teve acesso", não me tranquiliza sobre a veracidade nem me levam obrigatoriamente a acreditar acriticamente no que leio e ouço. A razão é simples, quem reproduz a informação em forma de notícia não me consegue garantir que não tenha havido premeditação na passagem intencional de certa informação e que a mesma tenha sido validada segundo critérios da veracidade, comunicabilidade, socio-referencialidade e inteligibilidade o que não é o mesmo que ser confirmada por outras vias, mas isso não é validar a informação, é confirmar por outrem o que já se sabia.
É costume ouvir dizer-se que "a televisão disse", ou que "eu vi na televisão". As notícias que se referem a assuntos que são do foro da justiça a televisão não mostra nada, nem pode, apenas diz, salvo casos que acompanhem o exercício das funções da justiça e, mesmo assim, apenas quando a informação do que irá acontecer seja passada para alguns órgãos de comunicação antes do próprio acontecimento. É o caso de buscas ou de prisões por exemplo quando têm esses órgãos têm informação privilegiada.
Já alguém viu passar nas televisões, ou ser relatado pela imprensa, um crime no exato momento em que está a acontecer, a menos que o seja numa reportagem casual. Seria possível apenas e se, quem fosse praticar o crime, avisasse previamente o dia e a hora em que o iria praticar.
A prisão de Sócrates foi um caso foi factual que se insere na obtenção de informação privilegiada dada antes do acontecimento. Mas apenas e só esse facto, porque o resto são rumores, provocados intencionalmente ou não, informação a que o jornal X ou o canal de televisão Y dizem ter tido acesso, etc.. As televisões neste caso dizem mas não mostram a não ser imagens de arquivo já antigas. O que os jornais dizem não provam e as fontes podem não me dar garantias para acreditar na veracidade do que afirmam.
É assim, sou livre de poder desconfiar de que foi criada uma cultura labiríntica sobre este processo que, intencionalmente ou não, pretende baralhar a opinião pública com objetivos e contornos que não posso deixar de duvidar sejam de cariz jurídico-político.