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O conceito que a oposição de direita gosta mais de utilizar: reformas estruturais

24.07.23 | Manuel_AR

Reformas estruturais.png

Este interessante artigo de Ricardo Paes Mamede aborda um tema que muitas vezes é ouvido e desaguado nos nosso ouvidos por comentadores e políticos, sobretudo do lado da direita, quando fazem oposição ao Governo. Ele são as reformas estruturais que não se fazem, que não se fizerem, que falta fazer, etc. etc.. Mas, no meio disto, nada mais dizem sobre o que são essas ditas reforma de que falam. É isto que o autor pretende ajudar a esclarecer. 

Os políticos falam para nós, pobres ignorantes, que absorvemos acriticamente o que nos dizem, julgam eles. 

Diga lá que reformas estruturais

Pouco a pouco, a noção de reformas estruturais passou a ser usada na UE para abarcar um leque vasto de prioridades de intervenção pública, muitas vezes contraditórias entre si.

Há palavras e expressões que muita gente usa mas pouca gente sabe explicar. Reformas estruturais é uma delas.

O problema não é específico de Portugal. Dois investigadores da Universidade Livre de Bruxelas, Amandine Crespy e Pierre Vanheuverzwijn, publicaram em 2019 um estudo onde analisam o uso dado ao longo dos anos à expressão “reformas estruturais” por diferentes pessoas e instituições, em particular na União Europeia (UE). As respostas que obtiveram de políticos e altos quadros da UE e dos Estados-Membros, quando desafiados a definir o conceito, são embaraçantes pela sua vacuidade.

Há diferentes motivos para que aquela expressão tão recorrente seja utilizada com tanta falta de precisão. O primeiro motivo é retórico.

A partir da década de 1980, “reformas estruturais” foi o eufemismo encontrado para legitimar junto dos cidadãos um conjunto de medidas impopulares. Expor os produtores nacionais à concorrência global sem limites, desregular as relações laborais, liberalizar o mercado da habitação, promover o sector financeiro, privatizar empresas e serviços públicos, reduzir a protecção social, ou dar prioridade à redução da dívida pública em vez do combate ao desemprego, tornaram-se parte da agenda política de muitos partidos, governos e instituições internacionais. Esta vaga neoliberal rompeu com as décadas do pós-2.ª Guerra Mundial, quando grande parte dos países apostava na intervenção do Estado para promover o desenvolvimento económico e a distribuição de rendimentos, e para combater as recessões e o desemprego.

A mudança de rumo – que começou no Reino Unido e nos EUA pelas mãos de Thatcher e Reagan, estendendo-se a grande parte dos países em desenvolvimento por pressão externa, e à UE por vontade própria – criou resistências em diferentes sectores da sociedade, em particular junto dos trabalhadores e das empresas mais vulneráveis. Foi então necessário encontrar formas de neutralizar a contestação – e a retórica foi uma das vias. Em vez de “desproteger os trabalhadores”, falava-se em “diminuir a rigidez do mercado de trabalho”. Em vez de “cortar nos apoios e nos serviços públicos”, falava-se em “promover a responsabilidade individual” ou “permitir a livre escolha”. De uma forma geral, em vez de “desregular, liberalizar e privatizar”, passou-se a falar de “reformas estruturais”.

A utilização eufemística da expressão não desapareceu até hoje, mas as coisas evoluíram. Quatro décadas de fraco crescimento da produtividade, de instabilidade financeira, de estagnação salarial, de aumento das desigualdades sociais e de degradação ambiental retiraram glamour às soluções políticas que se baseiam na imposição da concorrência de todos contra todos, em todas as esferas da vida em sociedade.

Em vez de abandonar o conceito, a UE mudou a retórica. Nos documentos comunitários, a expressão “reformas estruturais” passou a ser utilizada para referir todas as alterações nas políticas públicas que visam responder a problemas considerados estruturais – ou seja, que são persistentes e têm grande impacto. Os problemas em causa incluem, como antes, a competitividade da economia e a sustentabilidade das finanças públicas, mas não só. O envelhecimento demográfico, a pobreza e a exclusão social, as desigualdades na distribuição dos rendimentos ou as alterações climáticas passaram a ser referidos como desafios estruturais das sociedades europeias que precisam de ser enfrentados.

Pouco a pouco, a noção de reformas estruturais passou a ser usada na UE para abarcar um leque vasto de prioridades de intervenção pública, muitas vezes contraditórias entre si. Nas recomendações que a Comissão Europeia faz anualmente aos Estados-Membros, surgem com frequência orientações de sentido oposto – umas apelando à consolidação orçamental, outras ao reforço da protecção social e do investimento público; umas sugerindo maior liberalização do mercado de trabalho, outras o reforço da negociação colectiva; umas defendendo a utilização de mecanismos de mercado para controlar as emissões de carbono, outras uma intervenção directa dos Estados sob a forma de regulação estrita ou até da proibição de certas actividades poluentes.

Para as instituições europeias, o uso ambíguo do conceito de “reformas estruturais” não é um problema, é uma conveniência. A utilização de uma expressão apelativa para fins tão distintos permite navegar entre uma enorme variedade de valores, culturas nacionais e orientações políticas, passando a ideia – quase sempre errónea – de que o papel da UE é fomentar a adopção pelos Estados-Membros de soluções adequadas, sem interferir nas escolhas democráticas de cada país.

Mas a falta de precisão quando se fala de reformas estruturais não decorre apenas de estratégias retóricas, mais ou menos deliberadas. Na maior parte dos casos é apenas falta de conhecimento ou de reflexão aprofundada sobre os assuntos em causa.

A maioria dos políticos e comentadores não hesita em defender que “são necessárias reformas estruturais” em várias áreas. Experimentem perguntar-lhes o que entendem por reformas estruturais, que reformas defendem em concreto e por que motivos. O mais provável é balbuciarem, sem conseguirem responder à questão. Ou confundirem reformas estruturais com problemas de natureza estrutural. Ou defenderem medidas que já estão no terreno e não sabem. Ou sugerirem iniciativas que pouco alteram o que já existe. Ou ainda apontarem soluções de viabilidade duvidosa.

O facto de um problema ou desafio ter uma natureza estrutural não significa que a melhor resposta passe por rupturas no modo de governar as áreas em causa. Nenhuma reforma explica por si só o progresso admirável que Portugal registou nas últimas décadas em domínios como a redução do abandono escolar e da mortalidade infantil, ou o aumento da produção científica e da inovação empresarial.

Por definição, os problemas estruturais demoram anos a resolver. Mais do que grandes rupturas pontuais, é necessário persistência e coerência ao longo do tempo. Fazer bem o que já está previsto é menos sexy do que anunciar receitas milagrosas para tudo e mais alguma coisa, sem detalhar muito o que se diz nem discutir as suas implicações. Mas para o desenvolvimento do país, em muitos casos, importa mais ter boas políticas do que grandes reformas.

O autor é colunista do PÚBLICO