Modelos de desenvolvimento há muitos, chapéus também há muitos
Embora concordando, em parte, com o que escreve Rui Tavares no jornal Público parece-me ser um atribuito da esquerda querer sempre tudo para já. Neste caso estou com os que dizem que muito, depressa e bem não há quem! E quando se pretende transformar o país lá aparecem as manifestações contra.
OPINIÃO
(Rui Tavares, in jornal Público, 10/03/2021)
E uma missão para transformar o país, porque não há?
Portugal precisa de um grande debate nacional sobre o seu modelo de desenvolvimento futuro, e precisa de várias reformas transformadoras: pelo menos no ensino, na regionalização e na administração pública, incluindo justiça.
Marcelo Rebelo de Sousa apresentou cinco missões ao país para o seu segundo mandato e eu desejo-lhe toda a sorte do mundo. Nenhuma das missões de Marcelo é insensata ou incorreta, bem pelo contrário: manter o regime democrático e com ele fazer frente “às mais graves pandemias” (incluindo, presumivelmente, a pandemia do nacional-populismo); desconfinar com sensatez; reconstruir as vidas das pessoas com crescimento, mas sobretudo com coesão, que são a terceira e quarta missão; e, finalmente, assumir que Portugal “não é uma ilha no universo” e aprofundar a nossa ação no plano da lusofonia, europeu e mundial.
Concordo com tudo, e aplaudo a passagem em que Marcelo Rebelo de Sousa apresentou a sua visão de uma democracia feita de “inclusão, tolerância, respeito por todos os portugueses”, em que ninguém seja “sacrificado ao mito do português puro”.
Infelizmente, não chega. Se as nossas missões forem só estas, corremos o risco de falhar redondamente, tal é o tamanho dos desafios que temos pela frente e o peso dos problemas que trazemos de trás. Nesta década vamos ter não só as consequências da pandemia, mas uma economia global em plena transformação e com divergências acentuadas entre a Ásia e o Ocidente, e agora também entre os EUA e a UE, se não for aprovada uma segunda bazuca. Mas teremos também a expansão da inteligência artificial, do teletrabalho, da hiperconectividade em 5G, da impressão 3D, tudo a necessitar de mais incorporação de conhecimento e tecnologia e de mais capacidade de requalificar a força de trabalho. E teremos ainda o aprofundar da crise ecológica e os seus impactos no território nacional, na vida das pessoas, na agricultura e na biodiversidade. Desafios não faltam, e a maior parte deles — como no passado a entrada na China na Organização Mundial do Comércio, o alargamento a leste e a entrada no euro, que conjuntamente nos puseram a patinar durante as duas primeiras décadas do século — nem sequer entram no debate público em Portugal. Com que recursos financiar as universidades do futuro? Com que impostos combater o predomínio dos combustíveis fósseis? Como garantir que funciona o elevador chamado Estado social?
O discurso de Marcelo Rebelo de Sousa, tal como a prática governativa de António Costa, está feito de boas intenções e sentimentos no sítio certo: é de facto preciso reconstruir a vida das pessoas, e nas suas belas palavras isto “é tudo ou quase tudo: emprego, rendimentos de empresas, mas também saúde mental, laços sociais, vivências e sonhos”. Mas se é verdade que isto “é muito mais do que recuperar ou regressar a 2019”, por que não existe um diagnóstico acerca dos padecimentos do Portugal de 2019 que já então tornavam difícil que superássemos sem mais os desafios da nova década?
A verdade é esta: Portugal não chega lá com esta indefinição em torno do seu modelo de desenvolvimento, nem com metas que eram adequadas ao nosso passado recente mas que estão profundamente desajustadas do grau de exigência que temos de ter para o futuro. Não é preciso só manter, reconstruir, recuperar; é preciso entender que um Portugal que joga para o empate — apenas convergir com a média da União Europeia, sem querer tornar-se numa sociedade de vanguarda em termos económicos, ambientais e sociais — acabará a perder e, na posição periférica que temos, tornar-se insustentável.
Passam governos e doutrinas políticas e continua a não haver uma resposta satisfatória ao problema do que queremos ser na Europa e no mundo neste século XXI. A doutrina de Passos Coelho e Paulo Portas era, no seu “ir além da troika”, a de que Portugal teria de se tornar competitivo cortando nos custos do trabalho, ou seja, embaratecendo-se. A doutrina da saída do euro, que tantos defenderam há uns anos, era a mesma, apenas por outra via: desvalorizar o “novo escudo” e ser competitivo, embaratecendo-se. Ambas se esqueceram de um detalhe: as pessoas emigram. E se cortamos os salários aos portugueses, ou lhes damos um salário em moeda fraca, as pessoas — num contexto de liberdade de circulação na União Europeia — vão ganhar mais lá fora com a formação que lhes demos cá dentro.
Perante a rejeição dupla destes caminhos (da desvalorização da austeridade a da desvalorização da saída do euro) a estratégia de António Costa e de Marcelo Rebelo de Sousa tem sido navegar à vista. Não chega.
Portugal precisa de um grande debate nacional sobre o seu modelo de desenvolvimento futuro, e precisa de várias reformas transformadoras: pelo menos no ensino, na regionalização e na administração pública, incluindo justiça. E precisa de o fazer agora, que o 25 de Abril se aproxima do meio século. Mas, caramba, como a falta de ambição da nossa elite política é aflitiva.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Historiador; fundador do Livre