Mentira de Mortágua ou verdade alternativa da direita
O debate entre Mariana Mortágua e Luís Montenegro mantem-se depois do frente a frente devido ao argumento de Mortágua sobre a lei das rendas de Assunção Cristas conhecida por Lei Cristas no tempo do governo de Passos Coelho.
Li hoje no jornal Público um artigo de opinião de Carmo Afonso que abaixo reproduzo, mas antes farei um enquadramento. Lei Cristas, foi assim que ficou conhecida a mudança no arrendamento feita em 2012 no governo do PSD e CDS e promulgada por Cavaco Silva. Cavaco para mostrar na altura que estava atento e preocupado, escrevia numa nota da Presidência que "o Presidente da República, tendo tomado conhecimento do comunicado divulgado pelo Governo na passada sexta-feira, dia 27, esclarecendo vários aspetos relativos ao Decreto da Assembleia da República que procede à revisão do regime jurídico do arrendamento urbano (...), decidiu promulgar como lei o referido diploma".
A explicação que convenceu Cavaco não foi na altura suficiente para os inquilinos, que temiam os aumentos e o que acontecerá aos inquilinos que não consigam suportar uma renda de 1/15 do VPT (Valor Patrimonial Tributário). “Serão despejados, não há a menor dúvida”, lamentou na altura Romão Lavadinho, presidente da Associação de Inquilinos Lisbonense (AIL).
Apesar de na referida nota Cavaco Silva dizer “assegurar a estabilidade contratual e a proteção social” dos arrendatários em situação mais vulnerável, havia uma "vasta experiência de diplomas que são prometidos e que nunca saem do papel", afirmou, na altura a AIL que lamentava a promulgação e que o Presidente Cavaco não estava a cumprir nem a fazer cumprir a Constituição.
Esta lei volta agora a ser notícia depois do debate entre Mortágua e Montenegro. A direita arrana uma verdade alternativa, termo que se refere à ideia de que a verdade pode ser moldada ou alterada para se adequar a uma narrativa ou perspetiva particular e pretende ainda fazer uma lavagem histórica ao que fez na altura remetendo para anteriores leis.
Aqui segue o artigo de opinião de Carmo Afonso sem que antes refira que não sou simpatizante do BE, nem tão pouco de Mariana Mortágua, mas não me inibo de apoiar qualquer político que eu entenda estar dentro da razão, apenas abro exceção aos que raramente, ou nunca, têm razão e que, à falta dela, se agarram ao populismo e à demagogia.
A lei da Cristas e a avó da Mortágua
É muito óbvia a razão pela qual continua a insistir-se na acusação a Mariana Mortágua de que terá mentido. Ajuda muito a estabelecer o paralelismo com o populismo da extrema-direita.
Carmo Afonso
In jornal Público 23 de Fevereiro de 2024
Comecemos pelas afirmações de Mariana Mortágua no debate com Luís Montenegro: “Eu lembro-me de uma lei das rendas, em que as pessoas idosas recebiam uma carta e, se não respondessem durante 30 dias, a renda aumentava para qualquer valor e podiam ser expulsas.” Esta afirmação é verdadeira. As pessoas idosas não estavam excluídas do regime. Também elas poderiam receber a famosa carta, que continha uma proposta para um novo valor de renda e para um tipo e duração de contrato. Caso não respondessem a essa carta, no prazo de 30 dias, a ausência de resposta valeria como aceitação da proposta. Isto significa que as novas condições entrariam em vigor a partir do primeiro dia do segundo mês seguinte ao do termo do prazo.
Peço-vos que tenham presente que estamos a falar de pessoas idosas sem qualquer apoio jurídico. Poderia tratar-se de um inquilino com 90 anos, tendo como único rendimento uma pensão mínima. Se não cumprisse o prazo de resposta, perderia – de forma irremediável – todos os seus direitos e passaria para uma renda fixada pelo senhorio e, claro, incomportável. Isto equivale a ser despejado. Se passado um mês e meio fizesse prova da sua idade, essa prova já não serviria para nada. A verdade é que, até hoje, nunca se apurou quantos idosos ficaram sem casa nestas circunstâncias. Já agora: quem diz idosos, diz também pessoas portadoras de deficiência e com rendimentos miseráveis.
Mariana Mortágua prosseguiu: “Eu vi idosos a serem expulsos, eu conheço o pânico que era receber uma carta do senhorio. Eu vi o sobressalto da minha avó ao receber cartas do senhorio, porque não sabia o que é que lhe ia acontecer...” Não me considero em posição de afirmar se Mortágua viu ou não pessoas a ser expulsas das casas onde moravam há anos, se se apercebeu do pânico dos idosos e se a sua avó ficou sobressaltada quando, por essa altura, recebeu cartas do seu senhorio. O que posso afirmar é que, enquanto advogada, assisti a todas essas situações. E atrevo-me a garantir que todos os idosos que receberam cartas dos senhorios naquela altura, ou pelo menos aqueles que sabiam da alteração legislativa, ficavam em sobressalto. Como se pode duvidar disto? Talvez os leitores tenham a experiência do sobressalto de receber uma qualquer carta da Autoridade Tributária. Somos todos humanos e reagimos todos ao perigo. É o batimento cardíaco que acelera e a temperatura do corpo que aumenta. O transtorno é transitório, mas desagradável. Para uma pessoa idosa, pode ser especialmente perturbador.
E Mariana Mortágua finalizou afirmando: “E essa foi uma responsabilidade do PSD que esvaziou as cidades.” Será aqui que mentiu? Diria que não. Basta ouvir de onde nos chegam os elogios a esta lei, considerada como a grande impulsionadora da reabilitação urbana em Lisboa e no Porto. Reabilitaram as cidades, e claro que isso é positivo, mas à custa da expulsão de centenas ou milhares de pessoas que deixaram passar o prazo de resposta aos senhorios, que deixaram de poder pagar as rendas aumentadas ou que simplesmente viram os contratos chegar ao fim, decorrido o período de transição. Pagou-se um preço muito alto pela reabilitação. Que o digam os lisboetas que passaram a morar em Almada ou noutros concelhos limítrofes de Lisboa. Os prédios estão mais bonitos, é um facto. Mas faltam as pessoas que cá moravam.
É muito óbvia a razão pela qual continua a insistir-se na acusação a Mariana Mortágua de que terá mentido. Ajuda muito a estabelecer o paralelismo com o populismo da extrema-direita, que de facto tem mentido quase todos os dias nesta pré-campanha. A última mentira é especialmente engraçada: Ventura queixou-se de a caravana do Chega ter sido recebida com tiros em Famalicão. Mas a PSP veio esclarecer que se tratava de "rateres" de uma mota que integrava a própria caravana. Não há nada de novo para ver aqui. Mentem, logo existem. Mas não é o caso de Mariana Mortágua, a quem deve ser reconhecido rigor no que afirma e o prévio estudo dos temas sobre os quais fala. A comparação é ofensiva.
Por outro lado, é altamente esclarecedor que continuem a defender uma lei que tanta mossa fez à vida de milhares de portugueses e que acabou por contribuir para a crise na habitação que enfrentamos. Uma coisa é defender essa lei sem antever os seus efetivos impactos. Fazê-lo agora significa renovar os votos a uma das facetas mais cruéis da governação passista.