Ao contrário dos programas de televisão de Ricardo Araújo Pereira, as deliberações da ERC não se destinam a fazer-nos rir.
RAP gosta de tratar bem os seus convidados. Dá-lhes a oportunidade de brilhar e de se apresentarem espirituosos. Qualquer pãozinho sem sal que lá vá acaba por revelar uma faceta, que na verdade quase todos temos, que faz merecer afecto ou simpatia. Por que raio deveria fazer isso a André Ventura?
A ERC deliberou sobre o assunto e estava particularmente inspirada. Considerou que o programa de RAP, sendo de humor, não está abrangido pelo regime jurídico da cobertura jornalística em período eleitoral. Este regime aplica-se a todos os órgãos de comunicação social, mas, por razões óbvias e até instintivas, diz apenas respeito a jornalismo e não vincula programas de entretenimento. Aqui estaria a resposta jurídica para a questão da ERC. Não é jornalismo, não deve ser tratado como jornalismo e, por isso, não está obrigado ao cumprimento do princípio da igualdade de oportunidades aqui em causa.
Sucede que a ERC, inspirada como estava, muda de regime jurídico e passa a incluir programas de humor numa disposição de carácter geral, o art. 56.º da Lei Eleitoral para a Assembleia da República (LEAR). Mais, tomou o lugar da Comissão Nacional de Eleições que, tendo essa competência prevista nas suas atribuições fundamentais, deve assegurar a igualdade de oportunidades dos candidatos por parte de entidades públicas e privadas, como previsto no referido artigo.
Claro que a ERC não é clara. Considera, por exemplo, que RAP tem uma maior margem de discricionariedade na forma como aborda o período eleitoral. Ora se não está em causa a legislação que o desobriga por não fazer jornalismo, mas sim uma lei geral que diz que todas as entidades, públicas ou privadas, estão sujeitas ao princípio da igualdade de oportunidades durante a campanha eleitoral, de onde vem esta maior discricionariedade? É que a lei geral não contém essa maleabilidade. Se estivesse em causa a aplicação do art. 56.º da LEAR, o “Isto É Gozar Com Quem Trabalha” não teria mais liberdade que um teatro municipal ao disponibilizar as suas instalações durante a campanha eleitoral a diferentes forças políticas.
Daqui saltou para considerações contraditórias e turvas como considerar que o programa de RAP cruza política com entretenimento e que a escolha de determinados convidados, com a exclusão de outros, deve ser objeto de especial ponderação. Sobretudo, seriam considerações irrelevantes se, como pretende a ERC, estivéssemos perante a aplicação da LEAR.
Pergunta: em que é que ficamos?
Talvez alguns de vós se recordem do ritmo da cantilena que marcava um sketch dos Gato Fedorento em que RAP imitava Marcelo Rebelo de Sousa e a sua posição relativamente ao aborto. A conversa entre RAP (Marcelo) e José Diogo Quintela (uma convidada de Cascais) corria assim:
– Convidada residente em Cascais: Posso fazer um aborto?
– Marcelo: Pode!
– Convidada residente em Cascais: Mas não é proibido?
– Marcelo: É!
– Convidada residente em Cascais: E o que é que me acontece?
– Marcelo: Nada!
A ERC resolveu fazer parecido. O RAP tem maior discricionariedade a escolher os seus convidados? Tem! Mas não é proibido desrespeitar o princípio da igualdade de oportunidades? É! E o que é que lhe acontece? Nada! Sucede que, ao contrário dos programas de televisão do RAP, as deliberações da ERC não se destinam a fazer-nos rir.
RAP é uma bolsa de resistência no processo de normalização do partido Chega e do seu dirigente André Ventura. Uma pessoa que sabe fazer-nos rir também sabe levar-nos a sério
RAP recusa-se a convidar André Ventura para os seus programas de entretenimento e claro que é livre para o fazer. Todos nós somos igualmente livres para ter uma opinião sobre esta decisão de RAP. Tenho prazer em falar da minha: o RAP é uma bolsa de resistência no processo de normalização do partido Chega e do seu dirigente André Ventura. É um motivo de orgulho a forma como um dos principais humoristas portugueses se recusa a embalar na ideia de que devemos tratar a propagação de um ideário racista e neofascista como um fenómeno normal da vida política portuguesa, sentarmo-nos todos à mesa e fazermos umas piadas sobre isso. Uma pessoa que sabe fazer-nos rir também sabe levar-nos a sério.
Várias vezes sentimos falta de uma intervenção da ERC a propósito de intervenções de Ventura na comunicação social. Recordem que ocupou, e muito, tempo de antena expressando posições xenófobas e discriminatórias e que a sua prestação num debate televisivo com Marcelo nas presidenciais lhe valeu uma condenação judicial já transitada em julgado. Silêncio absoluto.
E, afinal, não fazia falta nenhuma.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico