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Opiniões há muitas, é como os chapéus! Política, Sociedade, notícias e crónicas a Propósito de Quas

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Intervalando

24.12.19 | Manuel_AR

PausaNatal.png


Esta é uma época de pausa, a política abranda e entra numa espécie de sauna relaxante. O humor também faz parte da política. Assim, aqui vai um conto de um grande escritor brasileiro do século passado, Machado de Assis. Com ele descobrimos que o tempo passa, o mundo transforma-se..., mas as pessoas continuam essencialmente as mesmas − com os sentimentos, as emoções e as atitudes que são, ontem como hoje, próprias do ser humano. Este conto, do meu ponto de vista pode ter, segundo cada um uma interpretação polissémica.


O prefácio do livro diz que, por maiores que sejam os avanços da informática e os recursos das telecomunicações, o livro jamais perderá sua importância, como uma das maiores e mais extraordinárias invenções do homem. Nele, resume-se toda a trajetória da espécie humana, dos povos da antiguidade ao mundo contemporâneo, das grandes navegações à era espacial. Se os computadores tornam mais fácil a pesquisa e mais rápida a aquisição do conhecimento, nada substitui o prazer de ler um livro, de folhear suas páginas, de “curtir” a beleza da capa, de sentir, até, o cheiro da tinta e a textura do papel.


O conto é um apólogo, género alegórico que consiste numa narrativa que ilustra uma lição de sabedoria, utilizando personagens de índole diversa, reais ou fantásticas, animadas ou inanimadas.



Um apólogo


Conto linha e agulha.png


 Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:


– Por que é que você está com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?


– Deixe-me, senhora.


– Que a deixe? Que a deixe, porquê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.


– Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha.


Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.


– Mas você é orgulhosa.


– Decerto que sou.


– Mas porquê?


– É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?


– Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?


– Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...


– Sim, mas do que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por si , que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...


– Também os batedores vão adiante do imperador.


– Você imperador?


– Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só a mostrar o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...


Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa.


Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:


– Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?


Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.


A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.


Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho. para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando6, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:


– Ora, agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?


Vamos, diga lá.


Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:


– Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém.


Onde me espetam, fico.


Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: – Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!