Intervalando
Esta é uma época de pausa, a política abranda e entra numa espécie de sauna relaxante. O humor também faz parte da política. Assim, aqui vai um conto de um grande escritor brasileiro do século passado, Machado de Assis. Com ele descobrimos que o tempo passa, o mundo transforma-se..., mas as pessoas continuam essencialmente as mesmas − com os sentimentos, as emoções e as atitudes que são, ontem como hoje, próprias do ser humano. Este conto, do meu ponto de vista pode ter, segundo cada um uma interpretação polissémica.
O prefácio do livro diz que, por maiores que sejam os avanços da informática e os recursos das telecomunicações, o livro jamais perderá sua importância, como uma das maiores e mais extraordinárias invenções do homem. Nele, resume-se toda a trajetória da espécie humana, dos povos da antiguidade ao mundo contemporâneo, das grandes navegações à era espacial. Se os computadores tornam mais fácil a pesquisa e mais rápida a aquisição do conhecimento, nada substitui o prazer de ler um livro, de folhear suas páginas, de “curtir” a beleza da capa, de sentir, até, o cheiro da tinta e a textura do papel.
O conto é um apólogo, género alegórico que consiste numa narrativa que ilustra uma lição de sabedoria, utilizando personagens de índole diversa, reais ou fantásticas, animadas ou inanimadas.
Um apólogo
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
– Por que é que você está com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
– Deixe-me, senhora.
– Que a deixe? Que a deixe, porquê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
– Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha.
Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
– Mas você é orgulhosa.
– Decerto que sou.
– Mas porquê?
– É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
– Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
– Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
– Sim, mas do que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por si , que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...
– Também os batedores vão adiante do imperador.
– Você imperador?
– Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só a mostrar o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa.
Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
– Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?
Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho. para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando6, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
– Ora, agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?
Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
– Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém.
Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: – Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!