Aprovar a eutanásia no SNS com listas de espera quilométricas e sem uma rede de cuidados paliativos decente pode parecer muito modernaço – infelizmente, é apenas cavernícola.
Luís Montenegro chegou todo orgulhoso com a sua pergunta sobre a eutanásia. Se houvesse um referendo, a pergunta que o PSD gostaria de colocar aos portugueses era esta (não se esqueçam de respirar antes): “Concorda que a morte medicamente assistida não seja punível quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável?”
Esta pergunta, em bom português, é uma bela treta. E não é só por ser quilométrica, palavrosa, redundante e vários velhinhos correrem o risco de falecer antes de chegarem ao fim. A pergunta é uma treta porque ignora, da primeira à última letra, o verdadeiro problema da aplicação da eutanásia em Portugal em 2022: um SNS exangue, a estoirar pelas costuras e muitíssimo incompetente em valências fundamentais, que estão intimamente relacionadas com o desejo de morrer ou de permanecer vivo.
A única vantagem de um referendo sobre a eutanásia não seria dar uma resposta à pergunta do senhor Montenegro – seria explicar o quanto aquela pergunta é uma farsa nas actuais condições do SNS. Era ter, pelo menos, uma oportunidade para mostrar aos portugueses que vivemos num país profundamente atrasado armado em altamente progressista. Um país que faz leis de primeiro mundo com hospitais públicos cada vez mais perto dos do terceiro.
Aquilo que penso sobre a eutanásia está escrito num artigo com quase três anos, chamado “Suicídio assistido, eu percebo; esta eutanásia, não”, no qual defendi a solução suíça, ou seja, a simples despenalização do suicídio assistido. O problema deste nosso país é a alergia às soluções simples, porque tudo tem sempre de começar e acabar no Estado – e é isso que torna aquela pergunta do referendo uma vastíssima mentira. A lei portuguesa não pretende apenas descriminalizar a morte medicamente assistida. Ela transforma a eutanásia num serviço praticado pelo SNS; um serviço que consome camas, médicos e recursos, quando faltam camas, médicos e recursos para tratar gente que não quer morrer, mas viver.
E, por amor da santa, não me venham dizer que estou a ser demagogo ou a misturar questões. Basta olhar para a manchete do PÚBLICO desta segunda-feira: “Incumprimento dos tempos de espera aumenta nos cancros e na cardiologia.” Com um SNS disfuncional e uma rede de cuidados paliativos miserável, que deixa de fora 80% dos pacientes que dela necessitam; com milhares de doentes oncológicos que não são atendidos quando devem, que não são operados quando precisam, que não têm lugar para onde ir, quando chegam ao fim da linha; a eutanásia é muito mais um convite do que uma opção.
As conversas a que assisto sobre a eutanásia pressupõem que o doente é um ser a pairar no vazio, que decide morrer por livre e espontânea vontade quer esteja a ser bem ou mal tratado pelo SNS, quer esteja com dores excruciantes ou sem elas, quer tenha sido operado a tempo ou não tenha. Aprovar a eutanásia no SNS com listas de espera quilométricas e sem uma rede de cuidados paliativos decente pode parecer muito modernaço – infelizmente, é apenas cavernícola. É tão fácil o trabalho de escrever leis progressistas, não é? Já quanto à miséria do nosso SNS, não há nada a fazer – é um problema estrutural, crónico e sistémico. Assina e vira as costas. Isso, sim, dá vontade de morrer.