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A Propósito de Quase Tudo: opiniões, factos, política, sociedade, comunicação

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Em defesa do discurso de ódio?!

18.06.23 | Manuel_AR

Discurso de ódio.png

Alguns autores de opinião e de comentário, mais preocupados com o estilo do que com as ideias que elaboram, provocam no leitor menos preparado alguma dificuldade em os perceber. Escrevo o que penso sem preocupações estilísticas, escrevo ao correr da pena, ou melhor, do teclado. Preocupo-me mais com as ideias que pretendo passar com o possível cuidado no português.

Hoje resolvi abordar um artigo de opinião do jornal Nascer do Sol de 9 de junho, da autoria de João Brás intitulado “Discurso do ódio é o que é dito por quem eu quero calar”.

Não resisti ao comentário, no exercício de liberdade de expressão que me é devido em democracia, porque começa assim: “Em Portugal a estrela televisiva Cristina Ferreira foi a primeira subscritora da petição para a “‘Criminalização de ódio nas redes sociais’. O que políticos com propensão para a vigilância do pensamento desconforme abraçaram com entusiasmo…”

O autor do artigo mostra evidente azedume em relação à referida petição. O autor pode ser crítico de Cristina Ferreira, e até pode não gostar da senhora pelo mais vários motivos, assim como eu perfilho o mesmo sentimento. Sobre aquela senhora já escrevi textos neste blogue, que pode ver aqui, e aqui, mas, daí sair a defender com toda a gana a não limitação ao discurso de ódio vai grande distância.

A petição resultou no “Projeto de Resolução n.º 693/XV-1.ª - Medidas para combate ao discurso de ódio na internet” de 11 de maio de 2022 apresentado pelo grupo parlamentar do Partido Comunista Português e proposto por um grupo de deputados daquele partido.  Foi aprovado na generalidade em 2023-06-02 na Reunião Plenária n.º 136 com os votos contra o CH, abstenção do PS e IL e favor: PSD, PCP, BE.

Para me explicar e para que seja claro na minha pretensão de comentar o que escreve o autor do artigo, peço alguma paciência aos potenciais leitores pela extensão do texto, mas terá mesmo de ser.

Para defenderem os seus pontos de vista e sustentarem as suas opiniões, é corrente alguns autores procurarem argumentos baseados em correntes filosóficas e ideológicas que professam, ou em textos mais ou menos complexos por vezes impercetíveis apenas por eruditos e que são passíveis de interpretações contraditórias.

Os que têm as mesmas opiniões defendem-nas e defendem-se uns aos outros, embora por caminhos argumentativos diferentes. A direita, e sobretudo a extrema-direita, é useira e vezeira nisso, defende com toda a gana toda a liberdade que a democracia lhes possibilita, mas quando um dia chegam ao poder é a chuva de críticas sobre a tal dita liberdade.  Quando estes mesmos são os visados e o discurso de ódio lhes toca e ficam a braços com acusações torpes e ofensas ao seu bom nome e dignidade, a liberdade de expressão ilimitada que defendem é logo posta em causa. Elaboram discursos com propostas para se limitarem esses abusos e, perante tal libertinagem da expressão de pensamento, que defendiam/defendem colocam-se em bicos dos pés em prol da criminalização de tais discursos ofensivos.

Pela leitura do artigo de opinião de João Brás, pareceu-me ser este motivado por a proposta ter vindo do grupo parlamentar do PCP, comprovado pela referência que faz quando escreve que “Esta prática era bem conhecida no país dos sovietes e não só”, e que “No esplendor da URSS comités de camaradas controlavam os desvios burgueses”. Completa o seu argumento com “Designar os que nos contestam e criticam, que acreditam em outros modos de pensar e viver como indignos de poderem pensar ou propor outros modos de vida e rotulá-los de portadores de ‘discurso de ódio’ é neoestalinismo puro e duro”. Não me recordo de ninguém de direita ou da extrema-direita ter lutado tanto e tão veementemente pela liberdade de expressão de pensamento, quando estão no poder ou quando em regimes autocráticos e de ditadura.

O ódio àquele partido deve ser tal que lhe dificultou a lucidez da sabedoria e do espírito. Não sou simpatizante do PCP e muito menos após as suas posições relativamente à invasão da Ucrânia, mas aquelas afirmações extemporâneas e desajustadas ao tema são no mínimo ridículas.

Talvez o autor, pensador de filosofia que se acha de mente aberta considere que as limitações à liberdade de expressão em tenebrosas ditaduras de direita sejam válidas para não porem em risco a coesão política da nação e de “Deus, Pátria, Família”.

O autor parece ignorar que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, ela encontra-se nos limites na própria constituição e na grande maioria das vezes vem sendo tolhida em nome do princípio da dignidade da pessoa humana.

O radicalismo do autor em defesa da liberdade absoluta talvez tivesse como inspiração os argumentos de John Stuart Mill, um dos pensadores liberais mais influentes do século XIX, que aborda as questões em 1859 na sua obra “Sobre a Liberdade”.

Numa entrevista na revista LePoint de 2018  um advogado de extrema-esquerda que defende a extrema-direita este afirmava que “basicamente, se a extrema-direita defende a liberdade de expressão, é para poder ser abertamente racista. Eles odeiam judeus e querem poder dizer que negros e árabes são menos inteligentes, que todos eles têm de voltar para a sua terra, etc.”

A questão de fundo é sabermos se a liberdade de expressão de pensamento e os discursos de ódio não devem ser limitados, mas que devem ser absolutos como defendem os seus apologistas.  Afinal, deve haver limites à liberdade de expressão? Quando é para interesse próprio, não, quando é para interesse de outros, sim.

Um exemplo desta discussão verificou-se em tempo na Europa, quando o líder da extrema-direita francesa Jean Marie Le Pen questionava a existência de câmaras de gás na Segunda Guerra Mundial ao afirmar que que les chambres à gaz utlisées par les nazis lors de la Deuxième Guerre mondiale avaient été «un détail de l'histoire». Je ne dis pas que les chambres à gaz n'ont pas existé. Je n'ai pas pu moi-même en voir. Je n'ai pas étudié spécialement la question. Mais je crois que c'est un point de détail de l'histoire de la Deuxième Guerre mondiale». En 1991, il avait été condamné, par la cour d'appel de Versailles, pour « banalisation de crimes contre l'humanité» et «consentement à l'horrible».

Traduzindo: “Jean-Marie Le Pen sustentou que as câmaras de gás usadas pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial foram «um detalhe da história». «Não estou a dizer que as câmaras de gás não existiam. Eu mesmo não consegui ver nenhuma. Não estudei especificamente a questão. Mas acho que é um detalhe na história da Segunda Guerra Mundial.» Em 1991, foi condenado pelo Tribunal de Apelação de Versalhes por «banalizar crimes contra a humanidade" e «consentir com o horrível». Um bom exemplo para a liberdade de expressão poder ser absoluta, nem que seja para negar factos, históricos ou não.

O autor João Brás parece desconhecer que combater o discurso de ódio não é limitar ou proibir a liberdade de expressão, mas evitar que o discurso de ódio assuma proporções perigosas, incluindo incitação à discriminação, hostilidade e à violência, o que é proibido pelo direito internacional.

Para o autor a liberdade de expressão deve ser a libertinagem discursiva nas redes sociais e nas manifestações com palavras de ordem que atentem contra a dignidade humana e o caráter das pessoas, como racismo primário e violência contra os que não pensam diferente. Este tipo de pontos de vista são também eles uma espécie de pensamento único.

No decorrer do seu discurso o autor revela ignorância sobre a definição de discurso de ódio e pergunta: “quem define o que é discurso de ódio... Augusto Santos Silva? As fraturantes do PS e do Bloco? Um comité de especialistas comentadores dos média do sistema? Um consórcio de jornalistas dependentes?”. Pergunta lamentável demonstrativa da ignorância e falta de informação sobre o tema.

Não satisfeito atira também as culpas para a União Europeia. Gostaria talvez que o conceito fosse definido por filósofos de meia tigela, sobretudo da extrema-direita. O autor terá com certeza uma definição, ou nenhuma, ou então a pergunta é de retórica e pretende atingir política e ideologicamente alguns setores que sejam inconvenientes para a “sua democracia”.

Deveria saber que o conceito de discurso de ódio há muito que está caracterizado por especialistas na área, que não por filósofos de duvidosa democracia. Permitam-me também exercer aqui o meu direito ao enxovalho.

O discurso de ódio, conceito há muito caracterizado por especialistas que estudam esta problemática, é uma negação dos valores de tolerância, inclusão, diversidade e da própria essência das normas e princípios de direitos humanos. Pode expor pessoas visadas à discriminação, ao abuso e à violência, mas também à exclusão social e económica.

Apesar do conceito ainda continuar em discussão, especialmente em relação à liberdade de opinião e expressão, não discriminação e igualdade, o Plano de Ação da ONU sobre Discurso de Ódio define discurso de ódio como... "qualquer tipo de comunicação na fala, escrita ou comportamento, que ataque ou use linguagem pejorativa ou discriminatória com referência a uma pessoa ou a um grupo com base em quem ela é, ou seja, com base em sua religião, etnia, nacionalidade, raça, cor, descendência, género ou outro fator de identidade. Incluem-se entre outros imagens, desenhos animados, memes, objetos, gestos e símbolos que podem ser disseminados offline ou online.

Há questões que não devem ser apenas discutidas no foro das questões filosóficas, por vezes meramente subjetivas, cuja complexidade leva ao desinteresse por parte de população. O debate sobre o discurso de ódio deve ser mais pragmático e menos filosófico e não se limitar apenas ao âmbito da limitação, ou não, desse tipo de discurso, sobretudo nas redes sociais.

O que está em causa e que o autor do citado artigo parece estar a defender é a não limitação de qualquer forma de expressão comunicativa mesmo a do ódio que, segundo ele, atenta contra a "suas" presumíveis liberdades democráticas e de expressão. Pela minha interpretação o autor elimina à partida quaisquer possíveis restrições à liberdade de expressão. Tudo o que não se permita é contra a liberdade, defende-se assim a libertinagem discursiva pela ofensa, perseguição e ódio.

O autor tenta confundir o leitor ao colocar no mesmo baralho cartas com naipes de jogos diferentes ao levantar questões como a de que “Nada como criminalizar os que não pensam como eu, e não só demonizá-los como silenciá-los com rótulos criminosos e patológicos…”. Parece-me que estará a fazer o mesmo como aqueles que critica porque não pensarão como ele sobre a limitação sobre o discurso de ódio.

Vejamos então: ameaças de atentado à vida de pessoas, incitamento ao terrorismo e à sua concretização, seja por motivos religiosos, políticos, ideológicos ou outros devem ser tolerados. Será isto? Para o autor, qualquer discurso, seja de que forma e conteúdo for, deve ser tolerado em nome da liberdade do que chama expressão de pensamento.

Escreve ainda o autor João Brás que “As palavras não são ações e as ideias, pensamentos e opiniões devem poder ser debatidos, criticados, é esse o melhor modo de não se infantilizarem as pessoas, provarmos que há modos de viver e pensar mais decentes e dignos que outros...”. Esta é uma visão quimérica da realidade. Será que aqueles que se exprimem inicialmente por palavras para perseguirem etnias, raças e ideologias não se irão exprimir depois por ações? O ódio produzido por nazis contra judeus deveria de ser tolerado e de livre expressão porque no início não eram ações. Os factos comprovam que as palavras conduziram a ações. Mas, por outro lado, quem se manifestava contra o partido nazi através da expressão de pensamento era perseguido.

Será este o ponto de vista do autor que, justificado pela livre expressão de pensamento, se possa fazer a apologia e incitamento ao crime? Se assim for poderemos então defender publicamente que se persigam etnias, se proceda ao genocídio, fazer apologia ao nazismo, mesmo que se calcule possa levar a ações da prática de crimes e chacinas consequências da liberdade de expressão.

Não estou em crer que o autor não ficaria indignado e que não se importaria se, tal como escreve, a critica e o debate fossem “o melhor modo de não infantilizar as pessoas”, na circunstância de alguém, que não estivesse de acordo com o seu pensamento e não aceitasse a argumentação, o debate e a critica, o perseguisse, insultasse, ameaçasse de morte, injuriasse, lançasse suspeições de atos não foram por ele praticados, publicasse mensagens de ódio e ameaça à sua família, etc... E, caso esses discursos se mantivessem, qual bulling político, tal como jovens têm sido vítimas por outros colegas e outros agentes do ataque pessoal. O que pensa o autor sobre isto? Nada. Deixa campo aberto para tudo em nome da “sua liberdade de expressão” sob qualquer forma.

Continuo a questionar o autor sobre o que faria se, neste blogue, o difamasse, ofendesse, ameaçasse, acusasse, difundisse factos a seu respeito através de imagens falsas que o atingissem no seu bom nome e reputação, etc.? Se a tal procedesse e o divulgasse publicamente decerto que me poria um processo em cima dos costados. Onde estaria então o meu direito à liberdade de expressão?

Talvez através de retóricas argumentativas me demovesse de tudo o que disse e ameacei e debatesse comigo o meu pensamento e a minha opinião e fizesse a devida crítica. E, claro, logo depois, eu teria deixado os meus propósitos de ódio e retiraria tudo o que disse e passaria a ser um menino bem-comportado.  

Imagine-se que numa breve exposição de ideias se encetava uma conversa com um intolerante defensor do discurso de ódio e que, após uma breve exposição de ideias, lhe perguntamos então qual é o seu contra-argumento, e o interlocutor responde: - O meu argumento? É este o meu argumento -  mostra a arma que transporta. Penso que Karl Popper terá contado algo semelhante, não tenho a certeza.

Quando alguém lança numa rede social frases ofensivas e imagens com montagens falsamente comprometedoras de outro(a) esse(a) tem toda a liberdade de o fazer, será isto que o autor defende que não deve ser limitado? Isto parece-me ser tendencialmente uma liberdade de expressão sem limites, uma acracia da expressão.

Penso ser da mais comum racionalidade democrática que não se pode ferir a intimidade, privacidade, honra e imagem de outra pessoa. Logo, não se pode usar o argumento da liberdade de expressão para ferir outros direitos garantidos.

Termino com citações de Karl Popper sobre a tolerância em “A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos” onde afirma que “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”.

Numa nota de rodapé ao capítulo 7 (p. 289; V.1, tradução, 1973) em "A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos", Karl Popper escreveu que “o ‘paradoxo da liberdade’- a liberdade total leva à supressão dos fracos pelos fortes – e o "paradoxo da tolerância" - a tolerância ilimitada conduz ao desaparecimento da tolerância.”

Há países que ainda permitem uma variedade muito grande de discursos e ações com diversos espectros ideológicos. As democracias devem restringir discursos precursores de intolerância e de ódio que incitem à ação. A questão é descobrir como restringir, banir ou punir apenas e arranjar a solução certa. É difícil para as democracias centrarem-se nos discursos e grupos e partidos realmente perigosos e deixar o campo de ação o mais amplo possível do que é permitido. Numa primeira fase, algo terá de ser feito.