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Educação e o empurra culpas

11.12.20 | Manuel_AR

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A propósito da celeuma fugaz no início desta semana causada por João Costa ao afirmar que o retrocesso no desempenho dos alunos do 4.º ano a Matemática é uma “má notícia, claramente”, e que responsabiliza o anterior ministro da Educação, Nuno Crato pelos maus resultados recordei-me de um artigo que publiquei no blog “zoomsocial.blogs.sapo.pt” em 16 de fevereiro de 2014 que resolvi agora recuperar e que abaixo transcrevo.

O texto que escrevi relacionou-se com um artigo de opinião do dr. Guilherme Valente publicado no jornal Expresso da época (já não está disponível) e tem a ver com conceções pedagógicas de ensino do dr. Nuno Crato.

Aqui segue o referido texto:

 

Concursos televisivos, ignorância e os bodes expiatórios do costume

No Jornal Expresso de 01 de fevereiro de 2014 foi publicado um artigo de opinião do editor da Gradiva Publicações, Dr. Guilherme Valente, denominado "A formação de professores e a capital do Camboja" onde criticava as conceções educativas adotadas em Portugal e punha em causa as escolas superiores de educação. Isto, porque ficou escandalizado com a ignorância de muitos dos concorrentes, e com razão, do concurso "Quem quer ser milionário" que tem passado na RTP1. Não resisti a comentar um artigo de 555 palavras com cerca de 4000, pois o assunto é de tal modo complexo que não nos podemos limitar a dar umas dicas mais ou menos ideológicas conforme o que achamos ou devemos achar sem quaisquer fundamentos credíveis.

Tenho que dar razão ao autor do artigo e fico atónito com a manifestação da ignorância revelada por parte de alguns concorrentes, por mim já constatada, nas respostas que dão no referido concurso.

As respostas ou melhor comentários dos concorrentes exemplificados no artigo não me espantam. Através de uma análise mais cuidada pode verificar-se que são uma fuga e uma forma de tentar fazer humor, embora triste, com a própria e manifesta ignorância. Inferir que tudo isto é uma consequência dos modelos construtivistas, sim, porque há vários, e das escolas superiores de educação a quem cabe a responsabilidade da formação de professores parece mais uma espécie de vendeta despida de qualquer racionalidade. Talvez haja quem prefira que sejam advogados, engenheiros e outros sem qualquer formação pedagógica e didática a dar aulas a crianças.

Ao relacionar a causa das respostas e afirmações disparatadas dados por concorrentes de concursos televisivos com determinado modelo educativo põe, do meu ponto de vista, em causa a credibilidade do autor no que respeita à educação. Aliás, desconheço quaisquer investigações científicas efetuadas e publicadas pelo autor do comentário sobre temas educativos e reconhecidos nacional e internacionalmente.

Do meu ponto de vista, o que é grave, é a imputação e responsabilização da ignorância dos concorrentes a um concurso televisivo atribuídos à “inspiração dos gurus que geraram” e que alguns "impuseram por cegueira", que conduziram devido à recorrência a uma espécie de "perturbação sináptica e memética que perdurará".

O tema educação no que respeita aos modelos e conceções pedagógicos e educativos adequados para a nossa população escolar não tem sido objeto de debate público a não ser em círculos especializados. Nestes últimos três anos o que se tem visto são, por um lado, as sucessivas tentativas de reduzir os recursos à escola pública e, por outro, o retirar verbas dos nossos impostos para os atribuir às escolas privadas, mesmo àquelas onde existe oferta pública mais do que suficiente. Todavia nada sabemos sobre propostas educativas concretas do atual ministro sobre um projeto educativo para o país. Destrói-se o que existe e pronto!

Tornar a escola pública obsoleta e à míngua de meios é o objetivo que vai ao encontro do que alguns chamam destruição da escola pública. Medidas que vão agravar ainda mais o problema que dizem existir.

Há uma revolução em curso, no sentido negativo, apoiada por iluminados e defensores de uma escola idêntica à dos 41 anos da ditadura no que se refere a programas e conceções de ensino-aprendizagem.

Fala-se da alteração dos programas e dos currículos, da exigência, dos exames como condição última da aprendizagem e da qualidade e tecem-se críticas, não fundamentadas, às escolas superiores de educação. Fala-se de mais do ensino e muito pouco de aprendizagem. O ensino tomado como mera transmissão de conhecimentos é o fim em vista. Nada se esclarece claramente sobre qual deve ser o projeto em quem deve assentar o nosso sistema educativo.

Conheci um diretor de uma escola superior que chegava a afirmar que as ciências da educação não passavam de uma moda sem interesse e que, aos futuros professores, cabia apenas a missão de ensinar a ler, a escrever e a contar. Parece ser este, felizmente apenas para muito poucos, o ponto de vista dos tempos que correm. 

Como licenciado em filosofia seria suposto o Dr. Guilherme Valente ter um espírito aberto, embora crítico, não imbuído de um hermetismo científico obsoleto. Podemos aceitar, ou não, certas teorias, modelos ou conceções educativas e, com todo o direito, proferir críticas fundamentadas e colocá-las à discussão para as validar à luz de metodologias apropriadas, que não propriamente programas de entretenimento televisivo que em nada validam ou invalidam teorias e investigações científicas. Não vem agora a propósito mas o exemplo do PISA poderia invalidar a tese do Dr. Guilherme Valente.

Tendo tirado, como julgo, uma pós-graduação na Universidade Aberta, o Dr. Guilherme Valente deveria saber que o modelo construtivista é o adotado por aquela universidade. Assim, posso ser levado a concluir que o artigo nada mais é do que uma publicidade barata a uma qualquer das edições da Gradiva Publicações.

Afinal acabo por não compreender, e o defeito é sem dúvida meu, quais são as propostas e conceções educativas que apresenta em substituição das tais “conceções educativas construtivistas impostas na escola há mais de 30 anos”. Depreende-se do texto publicado vislumbrar duma visão ideológica tolhida por um conservadorismo retrógrado e passadista que não se adequa a uma escola dita de massas como e de ensino obrigatório que não existia no passado.

A comparação com as experiências de Summerhill que em nada têm a ver com as conceções educativas e didáticas atualmente praticadas é uma representação falsa e demagógica da realidade. Fiquei a saber, ignorância minha, que a experiência restrita de Summerhill era praticada em Portugal durante a ditadura e que continuou a sê-lo após o seu derrube porque segundo afirma o autor “Começa a revelar-se agora o que estas conceções educativas podem produzir quando impostas durante tanto tempo à totalidade das escolas de um país inteiro. Quarenta anos de ditadura com outros tantos de ‘eduquês` em cima”.

Será que o modelo educativo passadista que nos era imposto e na base do qual estudámos, baseado apenas na memorização sem reflexão, na aceitação sem discussão, na absorção de ideias entorpecidas que nos transmitiam numa ótica de magister dixit para serem debitando de seguida numa folha de papel de exame também não eram os mais adequado às aprendizagens?

Se as conceções educativas do passado não servem, e as praticadas no presente também não, não se compreende onde se pretende chegar. Se os quarenta e um anos de ditadura e os mais de trinta do tal “eduquês” a que o autor se refere não serviram, nem servem, e ambos são nocivos resta saber então qual é o modelo ou conceção a adotar.

O argumento da excelência sem uma base para a sua criação e surgindo do nada serve para tudo. Cabe perguntar onde está a excelência dos políticos e dos técnicos que falam sobre os temas da educação mas que nada propõem ou adiantam mas que apenas destroem. Pode estar neles a salvação da educação.

O que está em crise na educação é a autoridade democrática e a dignidade do professor que têm sido postos em causa pelos sucessivos governos, e ainda mais por este, que levaram os jovens a não os respeitar devido às políticas dos sucessivos pelouros educativos e que o atual piora.

Quaisquer que sejam as conceções educativas, pedagógicas e didáticas, se nada for feito neste sentido bem podem continuar a chover críticas ao sistema. Não basta alterar programas e substituir palavras como competência e objetivo por metas para que algo resulte. A questão essencial é muito mais profunda. Porém, em contraposição há um claro movimento na educação que pretende repensar o papel da autoridade do professor mudando algumas regras nas formas da relação educativa.

O autor afirma ainda que as conceções educativas praticadas não informaram nem ensinaram a pensar. Ora essa! Então não é o que propõe o modelo construtivistas que, ao contrário da absorção acrítica de conhecimentos, pretende que o aluno aprenda a pensar com base na resolução de problemas? Mais uma vez, devo estar com problemas de compreensão porque achava que não é a mera transmissão de conhecimentos e a memorização mecânica que ensinam a pensar.

Ensinar não é apenas transmitir conhecimento como alguns pretendem. O modelo que perfilham é o de que bem analisado é que os alunos sejam apenas um reservatório acrítico dos conhecimentos transmitidos pelos professores que serão debitados em exame típicos não aferido às respetivas idades mentais e cronológicas e que negam à partida os patamares de aprendizagem que diferem entre indivíduos. Como se todos fossem iguais e aprendessem ao mesmo ritmo. Tal qual entra o porco numa fábrica e sai o chouriço. Aí muitos acabrão por ficar no caminho e pelo abandono do estudo

Quanto às escolas superiores de educação acho que informaram mal o Dr. Valente porque revela total desconhecimento do que se passa nestas escolas superiores quando escreve que são as “conceções educativas, cultivadas nos cursos de formação de docentes, que esses novos professores transportam para o básico e o secundário, cujos alunos, por sua vez assim formatados, entram e se profissionalizam depois naqueles mesmos cursos”. A minha compreensão ou talvez ignorância estão presentes mais uma vez. Pensava eu que o construtivismo e a aprendizagem baseada na resolução de problemas não formatava os alunos, bem pelo contrário, estimulavam à reflexão e à compreensão. Estava na escuridão e agora fez-se luz ao ler o artigo.

Talvez as propostas não explícitas do Dr. Valente sejam as conceções centradas no ensino e não na aprendizagem que defendem em geral a centralidade do papel do professor e a ênfase na transmissão dos conhecimentos.

Este artigo coloca questões sem resposta, uma delas é modo como o construtivismo coloca em causa a abstração e as ciências puras pergunto? O exemplo do princípio de Arquimedes que o autor evoca não servirá com certeza os seus intuitos e pode ser facilmente desmontado já que, da forma como o coloca, somos levados a pensar que é numa ótica do conhecer e papaguear e não na compreensão dos seus fundamentos, traduzidos em fórmulas matemáticas aplicadas à física. O construtivismo neste caso pode ser mais eficaz e um complemento à memorização. Quando se mostrar a um aluno que ao colocar determinado objeto num recipiente com um líquido ele flutua e, de seguida, lhe perguntarmos porquê ele poderá colocar várias hipóteses e construir uma teoria sobre o que acabou de observar. As hipóteses serão então comprovadas ou não posteriormente com a ajuda do professor que ajudará à abstração e generalização através da representação e demonstração matemática do fenómeno.

Isto não é mais do que a metodologia das ciências. Será que o aluno, nestas circunstâncias não utilizará as necessárias ferramentas cognitivas que já possui e não memoriza de modo mais fácil e duradouro?

No meu modesto entendimento o currículo e as estratégias pedagógicas e didáticas que melhor preparam os alunos para serem trabalhadores produtivos e cidadão do futuro não é a de "enchê-los" com teorias e factos do presente que rapidamente ficarão desatualizados, mas as que irão mostrar-lhes como aprender autonomamente para se atualizarem e de como utilizarem a informação que adquirirem. Para tal os alunos precisam de:

  • Aprender uma base de conhecimentos essenciais – informação essencial.
  • Ter capacidade para utilizar eficazmente os conhecimentos em situações-problema dentro e fora da escola – compreensão.
  • Ter a capacidade de alargar ou aperfeiçoar esse conhecimento, desenvolvimento estratégias para lidar com problemas no futuro – uso do conhecimento ativo.
  • Ter capacidade de transferência, isto é, quando entre a situação de aprendizagem e a situação de aplicação há elementos comuns.

 

Há estudos que demonstram que os alunos se esforçam mais por compreender e recordar quando conseguem ver relações entre a matéria que estudam e as próprias vivências. Que professor já não se confrontou com a pergunta de alunos que o questionam sobre a necessidade de estudar um assunto ou que utilidade terá para eles. A pergunta recorrente mesmo em universidades é para que é que isto serve? Esta resposta pode ser-lhes fornecida pela aprendizagem baseada em problemas. Claro que tentar responder à questão com tudo o que é prático pode ser falacioso porque rejeita à partida tudo quanto seja do domínio da teorização e abstração. É necessário o bom senso para não cair no facilitismos, mas isso depende de técnicas e competências a adquirir pelo professor durante a sua formação.

Princípios ideológicos estão visivelmente patentes nas atitudes anti construtivismo. Compreende-se, porque muitos dos que se lhe opõem foram educados, tal como eu, no antigo regime de ditadura tempo em que pensar e refletir sobre o mundo era coisa a evitar. Nas universidades os alunos não podiam sair fora do que o professor dizia nas aulas e nas famigeradas sebentas sem o que seria certa a reprovação.

Se alinharmos por uma lógica de que o modelo que enxameou o ensino há mais de trinta anos não contribuiu para a qualidade e a excelência e trouxe consequências nefastas, podemos então demonstrá-lo através das competências de alguns dos atuais jovens governantes, assessores e outros, que aprendendo segundo o tal modelo construtivista que agora rejeitam, estaremos então de acordo, porque os resultados têm estado á vista.

O que está em causa é, afinal, a menorização da escola pública. Não tenho nada contra as escolas privadas pois foi nelas que fiz o meu percurso educativo no tempo em que os dinheiros do Estado não eram desperdiçados em benesses para as clientelas do ensino privado fossem elas laicas ou religiosas. O esclarecimento cabal para esta distribuição de erário público nunca nos foi explicado.

Penso que os defensores do regime neoliberal deveriam considerar as escolas privadas como qualquer outra empresa e sujeitarem-se à concorrência e às leis da oferta e da procura, deixando o Estado de lhes prestar assistência financeira competindo com as suas congéneres da oferta pública. Excluindo claro está em zonas onde não existe este tipo de oferta. O princípio não é o de melhor Estado, menos Estado, para poupar o erário público?

Um dos argumentos que é apresentados é que sai mais barato subsidiar o privado do que manter escolas públicas. Algo está errado, ou fazem mal as contas ou o ministério da educação é composto por uma série de incompetentes que não sabem como fazer a rentabilização das escolas que lhe pertencem.

Não vale a pena continuar quando a cegueira evidenciada tem como pano de fundo apenas questões ideológicas.

Mas quem sou eu para comentar um comentador com tal craveira intelectual?