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Derrubar o Governo?: Opinião de Pacheco Pereira no jornal Público

22.04.23 | Manuel_AR

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Derrubar o Governo mesmo que isso signifique estuporar a democracia (II)

Pode dizer-se que a “canalha” sempre falou assim, mas o altifalante que tem hoje impede que se ouça qualquer outra coisa, e isto é novo.

9. A enorme crise de racionalidade no discurso público não vem de agora, e foi já há muito teorizada à volta da “sociedade-espectáculo”, mas existe hoje um efeito potenciador que não existia, quando era a televisão o principal veículo dessa patologia do espaço público democrático. Esse efeito assenta na ilusão de participação, que sempre esteve presente mesmo imperfeitamente nos meios de comunicação tradicional, mas que agora o sistema conhecido como “redes sociais” não só amplifica como gera uma mutação comportamental. Essa mutação favorece o populismo com dois efeitos poderosos: um é a ideia de que, escrevendo e publicando nos múltiplos locais de “conversa” e imprecação, se está a participar; outro é um igualitarismo agressivo, tribal, radicalizado, que destrói qualquer ideia de mediação e qualquer discurso democrático. Pode dizer-se que a “canalha” sempre falou assim, mas o altifalante que tem hoje impede que se ouça qualquer outra coisa, e isto é novo.

10. O resultado deste processo é transformar toda a comunicação numa extensão das cloacas das redes sociais, num ciclo alimentar quotidiano que se presta às mil maravilhas à politização radical. É o que acontece hoje em Portugal, estuporando a democracia, para tentar derrubar um governo ao mesmo tempo medíocre e legítimo. É verdade que o Governo é medíocre, mas está longe de ser o primeiro a sê-lo, e, em democracia, não havendo crise no funcionamento das instituições, que não há, os governos derrubam-se em eleições.

11. Capas, títulos, temas na chamada comunicação social de referência”, que não tem resistido à pressão de uma ofensiva que é politizada de uma ponta à outra e que nada tem que ver com o jornalismo. É um processo suicidário para uma comunicação social séria. Um exemplo são os vários programas estão a ser criados dentro dos noticiários, partindo dos modelos de verificação de dados, para, pela escolha dos assuntos muitas vezes assentes em denúncias, dar uma imagem de disfuncionalidade do Estado, logo da responsabilidade do Governo. Portugal é o país onde tudo funciona mal, o que não é verdade, mas o efeito casuístico, sem cobertura estatística ou noutros dados, quase sempre sem uma verificação exigida pelas regras da deontologia, cria uma indústria de “denúncias”. Como o sector privado não entra nas avaliações, a não ser uns lares de idosos miseráveis, gera-se o efeito ideológico sem qualquer sustentação nos factos de que tudo no Estado funciona mal, e tudo no privado funciona bem.

12. Há alvos que são mais alvos do que outros. Aparentemente os alvos estão à esquerda, principalmente no PS, no BE, mas na verdade os ataques são para os sectores moderados no PS, porque são a espinha dorsal do partido no poder. Pedro Nuno Santos foi um alvo acidental, porque os alvos principais são Medina e Costa, como no passado foi Rio no PSD. É o centro-esquerda e o centro-direita, o empecilho para a radicalização, por isso, por tortuoso que seja o caminho, é lá que ele vai dar. Outros que fizeram o mesmo ou pior são poupados ao massacre quotidiano, em particular todos os que estão do lado “certo”. É por isso que não se queria que a comissão de inquérito da TAP chegasse à privatização, mesmo quando vários “casos” que não são “casinhos” atingiam a privatização e a gestão privada.

13. É um erro pensar que esta ofensiva vem do Chega. O Chega é um instrumento, é um parceiro menor que é necrófago. Está no fundo do mar alimentando-se dos cadáveres que se afundam. Vem de uma conjunção de pessoas, grupos e lobbies privados que tem vindo a financiar de forma muito significativa um aparelho ideológico e de propaganda com peso significativo em certas universidades e num sistema comunicacional, muito profissionalizado e muito capaz, e que impregna toda a comunicação social. A ele se associam vários “intelectuais orgânicos” conhecidos pelas suas relações com a direita radical. Vários jornais deficitários, sem vendas nem viabilidade, juntam-se a projectos mais consistentes, onde políticos transvestidos de jornalistas fazem agit-prop, e que num mesmo dia fazem o ciclo da manhã na rádio, na tarde na RTP, à noite na SIC, TVI, na RTP. Um dos aspectos mais eficazes é a “conversa” na rádio nos horários nobres da manhã, usando com muita eficácia e profissionalismo o carácter intimista da rádio. Nos EUA, a rádio é um dos maiores investimentos do sector mais radical de apoio a Trump.

14. Esta ofensiva agrupa vários interesses, muitas vezes definidos por aquilo que são contra, muito parecidos com os financiadores do Partido Republicano de Trump, que pretendem aumentar a sua influência e manter intocável o seu direito virtual de veto em tudo o que mexa nos seus interesses, no plano empresarial, no plano laboral, nos impostos, nas obrigações e nos mecanismos de regulação. Por que razão Montenegro chama “comunista” a Costa? Porque esta é a linguagem de interesses feridos na habitação, na distribuição, nos portos, nos transportes, no turismo, na agricultura intensiva, sempre que há polémicas envolvendo vários empresários ou empresas destes sectores, como acontece com a especulação com os preços, com a desregulação dos arrendamentos, com as condições de trabalho dos imigrantes nas estufas do Alentejo, com a atitude do sector privado da saúde face à covid, com a especulação mobiliária, com as situações de assédio nas fábricas, com a actuação da ASAE, todo este sistema comunicacional grita “comunista” de uma forma mais sofisticada do que Montenegro, mas com o mesmo conteúdo.

Foto
Stephane Bidouze DR

15. Quando falo dos interesses, não implica homogeneidade da resposta do “capital” e do seu envolvimento nesta radicalização política. Esta não vem de cima, não vem dos émulos das grandes empresas, vem da versão nacional do empresário do MyPillow, apoiante de Trump. Os grupos económicos mais importantes, bancos e empresas do PSI20 podem ocasionalmente financiar algumas iniciativas deste sector mais radical, principalmente nas universidades, mas sabem de mais para se comprometerem, entre outras coisas porque sempre se deram bem com o PS, precisam de estabilidade política e não a trocam por um curso das coisas demasiado imprevisível.

16. A democracia pode suportar tudo isto? Em abstracto sim, no concreto não. Há hoje uma crise interior da própria democracia, com fenómenos novos, que dão uma dimensão muito perigosa ao que se está a fazer. Esta toxicidade tornará mais “inorgânica” a nossa democracia, ou seja, pior, mais estuporada. Parte desses estragos vão tirar poder ao voto, aos procedimentos da democracia, aos tempos da representação, aos partidos políticos e dá-lo a poderes fácticos que usam o populismo, para defenderem interesses.

O autor é colunista do PÚBLICO