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Contratempo em Barcelona

06.06.17 | Manuel_AR

Há mais de duas semanas que me encontro afastado das lides da alimentação do blog e a causa esteve em Barcelona, já que resolvemos, eu e a minha mulher, ir visitar a cidade de Gaudi. Era nosso objetivo visitar os vários monumentos das arquiteturas emblemáticas únicas e distintas concebidas por aquele arquiteto e, de seguida, chegarmos a Saint Tropez no sudeste da França.


O bom tempo proporcionava a viagem em automóvel através de Espanha, calma e realizada em dois dias, com uma paragem para descanso na pequena cidade de Guadalajara, a cerca de sessenta quilómetros a nordeste de Madrid.


Atravessar aquela grande metrópole, próximo da hora de ponta, pelas circulares até encontrarmos a saída para Barcelona foi algo de aterrador. Não é a primeira vez que viajamos por terras de Espanha, vários itinerários já foram percorridos, mas parecia que todos os veículos do país tinham confluído para as autovias circulares que envolvem a cidade. Tudo fazia lembrar um carrocel de loucura. Ao fim de mais de meia hora lá estava a tão esperada saída A2- E90 para Guadalajara onde tires circulam em catadupa em direção a cidades, algures.


Guadalajara ficou com o meu telemóvel. Não sei se o perdi ou mo roubaram. Ainda estou para saber. Às dez da manhã, a cerca de cem metros do carro, ainda estava no meu bolso traseiro das calças, quando lá cheguei… onde estás? Onde te deixei que não te encontro? Esforço em vão. Ficou o benefício da dúvida. Talvez caído no banco do jardim onde antes nos tínhamos sentado. Este é o segundo telemóvel que ficou em Espanha, o outro foi em Mérida, há poucos anos atrás.


Finalmente Barcelona. Mais uma vez chegados a hora de ponta. Perto das 19 horas. Foi mais de uma hora para chegar ao centro com paragens sucessivas entre túneis e desvios. Motas, motinhas e motoretas proliferam nascendo e esgueirando-se pelos mais recônditos e estreitos espaços, resvés entre os veículos parados nas três faixas das circulares. Um autêntico inferno de motociclos. Surgem de todos os lados motociclistas de mochila às costas. No centro de Barcelona parques destinados a este tipo de veículos não faltam.


O nosso destino era um hotel moderno que tínhamos previamente marcado, localizado



no centro antigo da cidade, muito próximo da Catedral Gótica.


A Via Laietana passou a ser a nossa avenida de referência no meio de uma cidade de morfologia ortogonal onde facilmente nos podemos perder nos inúmeros cruzamentos, se não tivermos bem presente um claro mapa mental da cidade.


Barcelona_1.png


Deambulámos de carro pela cidade tentando chegar ao nosso destino, o hotel próximo da catedral. Procurámos aqui e ali a quem passava sem nunca obtermos uma indicação correta até que estacionámos o carro na Plaza d’ António Lopez no términos da Avenida Laietana, frente a uma cervejaria. Aproveitámos para beber uma água e uma coca-cola. Regressámos passados uns escassos 10 minutos. Entrei no carro e preparei-me para arrancar quando me veio a ideia de que, talvez ali, me indicassem como chegar ao nosso destino. Saí novamente do carro tendo deixado a Manuela à espera. Entrei novamente na cervejaria. Quando regressei andava a minha mulher a procurar pela mala de mão onde tinha todos os documentos, cartões e todo o dinheiro disponível  O que tinha acontecido?!


Barcelona_2.png


Nos breves momentos em que me ausentei, um sujeito tinha acenado e apontava para o carro levando as mãos à cabeça. A Manuela sai do carro para ver o que significavam aqueles sinais, dá a volta por detrás do carro para onde o sujeito apontava, quando se apercebeu do golpe já foi tarde, outro individuo que se encontrava na proximidade já lhe tinha levado a mala que deixou no chão dentro da viatura e que, por azar, inadvertidamente, tinha também guardada a minha carteira.


O que se passou de seguida foram momentos de desespero. Andámos mais de quinhentos metros para encontrar polícia. La Rambla foi onde conseguimos encontrar uma patrulha que estava a terminar o turno e que, atenciosamente, nos conduziu na viatura da patrulha até ao comissariado onde tivemos que apresentar participação do roubo e preencher papelada durante de mais de duas horas. Lá se encontrava, por acaso, àquela hora um polícia intérprete português, mas, mesmo assim, com problemas de comunicação linguística.


Para nos deixarem contactar pelo telefone o Visa Internacional para cancelamento dos carões multibanco e outros foi um drama. Apenas podíamos utilizar uma cabina pública que lá se encontrava. Mas como ligar se não tínhamos sequer moedas? Por fim lá consentiram que pudéssemos fazer uma chamada, e nada mais.


Já noite, sem comer, regressámos ao carro que, depois das voltas que a polícia deu para nos levar ao comissariado, já nem sabíamos onde se encontrava o carro. Tínhamos a referência da Via Laietana, foi assim que, perguntando, conseguimos chegar ao local ajudados também pela intuição espacial. Tínhamos estacionado o carro num pequeno espaço entre outros dois embora à justa, dava para sair com alguma dificuldade. Espanto nosso! O carro que estava estacionado à frente do nosso tinha saído e encontrava-se um outro que deixou um intervalo não mais de dois dedos. Foi mais uma vez com a ajuda de pessoas da cervejaria que, ao fim de pelos menos dez manobras conseguimos ver-nos livres daquele local, reiniciando a busca do hotel.


Àquela hora da noite, talvez vinte e três horas, de cada vez que parávamos para pedir informações sobre a localização do hotel, deparávamos com sujeitos isolados, não sei se romenos ou magrebinos, encostados aos edifícios, com ar suspeito que se aproximavam solícitos para tentar ajudar.  Um dos mais evidentes foi um deles que, quando saí do carro para perguntar, se aproximou de mim e à minha pergunta começou a indicar-me uma rua estreita que subia para algures, de sentido proibido dizendo que o hotel era para ali, mas que o carro não podia ir por lá, dizia:


-  Hay que aparcar el coche aquí y subir con las maletas por aquella calle que el hotel estaba hacia allí.


Sem lhe ligar nenhuma voltei para o carro e segui novamente para a Via Laietana onde encontrei um pequeno largo com uma praça de táxis cuja maior parte dos motoristas não eram, de certo, pelo seu semblante, de origem espanhola. Talvez magrebinos, talvez de outras origens. Parei para fazer a mesma pergunta a um deles. Espantado, como se nunca tivesse ouvido o nome do hotel pela primeira vez, sabendo nós que era bem conhecido. A referência era a proximidade da catedral gótica. O taxista puxou do seu smartphone e pesquisou. Procurou, mas nada. Virou-se para um colega próximo e fez-lhe a mesma pergunta que eu lhe tinha feito:


- Sabes dónde se encuentra este hotel? Yo sé que es por aquí - mostrou o smartphone - pero no estoy viendo!


O outro pegou no seu smartphone e procurou também e, ao fim de quase cinco minutos lá encontrou. Finalmente! Pensei. A Manuela continuava sentada no carro sempre atenta a movimentos suspeitos.


- Es allí justo delante – indicou o taxista.


Era do outro lado da Via Laietana, no largo em frente, mas não podia entrar lá com o carro. Teria de atravessar a avenida, colocar o carro no parque subterrâneo e levar as malas para o hotel que era ali muito perto, à direita.


Agradeci a informação. Dirigi-me para o carro e fui em direção ao parque. Olhei para o largo. De facto, o largo era espaçoso e lá se encontrava a indicação do parque pago. Era mesmo ali a catedral, e o hotel era próximo, numa rua à direita.


Finalmente chegámos ao hotel para fazer o check-in. Contámos o que se passou. Na receção já sabiam, pela polícia, que íamos chegar mais tarde. Tínhamos-lhes, entretanto, pedido para os avisar.


No carro guardávamos uma espécie de ração de combate que costumamos transportar para eventuais emergências. Água, uns patés, umas fatias de pão do tipo forma embalado, um chouriço fuet, uma lata de conserva e pouco mais. Foi isso que nos valeu nessa noite e no atribulado dia seguinte.


Sem documentos de identificação, sem cartões, sem dinheiro e apenas com os passaportes que, por estratégia, tinham sido guardados noutro local, dirigimo-nos, logo de manhã cedo, à sede do banco BBVA, próximo do hotel. Pensei ingenuamente que estaríamos safos, pois é neste banco que tenho conta em Portugal.  Lá chegados a primeira desilusão. O BBVA em Espanha nada tem a ver com o de Portugal com quem não têm protocolo. Já tiveram, em tempos, disseram-nos, e, como tal, nada podiam fazer. Aconselharam-nos a ir ao Consulado de Portugal em Barcelona e, talvez lá, conseguíssemos alguma coisa. Pedimos a direção e, com grande favor, pesquisaram na net e deram-nos o endereço.  Era lá para cima, numa rua perpendicular quase no fim da Via Laietana, perto do El Corte Inglês, na Ronda de Sant Pere.


Tínhamos marcado dois dias no hotel que se encontrava esgotado e, enquanto caminhávamos sentíamo-nos como duas pessoas que, se não conseguíssemos resolver o problema, seríamos dois potenciais sem abrigo arrastando as nossas duas malas pela grande cidade. Restava-nos para dormir o carro que se encontrava no parque subterrâneo.


Barcelona é uma cidade cuja população supera a de Lisboa, 1 milhão e 600 mil de habitantes e 506 mil habitantes respetivamente. As densidades populacionais das duas cidades também diferem sendo de 15900 hab/Km2 para Barcelona e de 6450 hab/Km2 para Lisboa.


Galgámos acima a dita via sem pequeno almoço com o calor perto do meio-dia já se fazia sentir. Perguntávamos onde era a rua do Consulado, mas as indicações eram por vezes contraditórias. Será que percebiam o que nós dizíamos? A expressão das pessoas a quem perguntávamos era esclarecedora. Mas, com a nossa insistência lá nos fizemos compreender e saber o que queríamos.


Chegados ao Consulado expusemos o nosso caso à rececionista que lamentou o facto e tentou diminuir o nosso desânimo dizendo que não éramos os primeiros. Primeira grande ajuda! Mandou-nos tirar uma senha e aguardar. Não havia muita gente, apenas duas pessoas na altura, ambas portuguesas. Entretanto outras foram entrando, possivelmente emigrantes, a maior parte por causa de revalidação de documentos O tempo de espera foi relativamente elevado até sermos chamados para expormos o nosso caso ao chanceler.


Atendidos que fomos e relatado o acontecido, o mesmo lamento pelo sucedido.


A solução passava por contactarmos em Portugal alguém da família que nos pudesse enviar dinheiro pela Western Union e essa era uma solução mais rápida. No mesmo dia teríamos o dinheiro.


Queríamos evitar se possível, dissemos-lhe, porque seria complicado. Mandou-nos aguardar. Passados breves momentos regressou e conduziu-nos ao gabinete do senhor Cônsul. Pessoa muito afável que nos recebeu com muito delicadeza. Algumas soluções foram propostas, uma delas era através do Banco Caixa Geral filial da CGD onde também tínhamos conta e que ficava na Avinguda Diagonal (Avenida Diagonal) que era lá para cascos de rolha. O cônsul pediu à secretária para ligar para o gerente do Banco para marcar um encontro connosco para tentarmos resolver o problema.  Ficava muito longe e não tínhamos dinheiro para os transportes. O cônsul propôs ceder-nos o seu passe para transportes públicos. A confusão era tal para apanhar transporte, para quem, como nós, desconhecia Barcelona e se encontrava numa situação fragilizada que resolvemos antes ligar do consulado para uma das nossas filhas pedindo para nos enviar dinheiro. E assim foi.


Estávamos há mais de doze horas sem termos ingerido alguma espécie de alimento ou bebida. Resolvemos, por isso, sair do consulado e ir ao hotel comer o que ainda sobrava da ração que tínhamos guardado. Quando chegámos recebemos, entretanto, uma chamada da nossa filha a dizer que já tinha enviado o dinheiro. Regressámos novamente ao consulado para dizer que não necessitávamos de ir ao Banco Caixa Geral porque esse problema já tinha sido ultrapassado. Agradecemos e partimos desta vez, e mais uma vez, pela Via Laietana abaixo para ir à estação dos correios que era no extremo oposto.


Esperámos algum tempo até sermos atendidos e, após confirmações e mais confirmações, assinaturas e mais assinaturas lá nos foi dado o dinheiro que tinha sido enviado e dirigimo-nos ao hotel com os olhos bem abertos para todos os lados, apesar do nosso estado de fraqueza física e psicológica em que nos encontrávamos.


O nosso destino que era Saint Tropez foi cancelado. Queríamos deixar Barcelona e Espanha o mais rápido possível. Nesse mesmo dia conseguimos comer uma refeição quente num dos muitos snacks da Via Laietana. Queríamos no dia seguinte sair dali para fora.


No largo da Catedral de Barcelona, de estilo gótico, encontravam-se miríades de turistas. Uma espécie de babilónia onde línguas e culturas se entrecruzavam. Sentados nas escadarias, e frente à porta da Catedral, turistas aguardavam para entrar enquanto outros tiravam fotografias. A escadaria era local de encontro e de convívio.


Barcelona_3.png


Como a Catedral de Barcelona ficava perto do hotel resolvemos, já ao fim da tarde, tirar umas fotografias e percorrer algumas das ruas do bairro gótico que, àquela hora, proliferava de gentes dos mais diversos pontos do globo. Nada mais vimos de Barcelona, a cidade de Gaudi.


A nossa intenção era não mais voltar ali, tal foi o trauma. Mas isso não vai acontecer. Logo que possamos, e o mais breve possível, lá iremos novamente. Iremos à tal cervejaria à frente da qual estacionámos o carro e, desta vez, comermos tranquilamente (?) umas verdadeiras tapas espanholas como nunca tínhamos visto e comido em Espanha que, por ingenuidade e descuido, não nos deixaram sequer provar.



 

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