Casos e Escândalos: Crónica de António Guerreiro
Casos e escândalos
Sem os casos e os escândalos, até parece que o espaço público fica vazio porque na verdade ele já não é senão um espaço esvaziado da política.
Escândalos e casos não são exactamente a mesma coisa. Ambos estimulam a indignação, que se tornou o sentimento mais bem partilhado, mas vistos de perto (e não cedendo a quem está sempre disposto a ver um escândalo em qualquer caso, por pequeno que seja, nem a quem tenta fazer a transmutação do escândalo em caso ou até “casinho”), há um factor que os diferencia, ainda antes de entramos numa análise mais apurada: enquanto o escândalo desencadeia uma reacção forte e quase unânime de indignação, de protesto, de injustiça, na medida em que mobiliza toda a gente, o caso provoca uma divisão nas hostes e não a unanimidade. Tem sempre um lado obscuro, críptico, que é preciso decifrar.
O jornalismo encontrou assim matéria abundante para praticar a decifração, que é o seu exercício preferido desde que teve de abandonar, em larga medida, outras tarefas de que estava incumbido na sua idade clássica (digamos assim). De tal modo que se tornou impossível saber se o teor do escândalo e do caso se mede pelas reacções públicas do jornalismo e induzidas por ele, ou se pelo grau de transgressão, de dissimulação ou mentira que nele germina.
Pode assim acontecer, e acontece muitas vezes, que um simples caso entra numa espiral e acaba em escândalo. E o escândalo significa uma exposição intensa, sempre à beira de uma explosão que até pode deflagrar e provocar escândalos em cadeia. Mais raro é assistir à inversão da espiral e ver o escândalo em estado de deflação.
Não estou a dizer, nem sequer a insinuar, que os escândalos e os casos são produções do jornalismo. Longe disso. O governo actual até já montou uma agência de produção destes “eventos” (como se diz na linguagem dos espectáculos) e compete muito profissionalmente com os seus rivais. Sem a aplicação e o esforço desta agência governamental, o jornalismo descobridor de escândalos e casos e as suas milícias avançadas de decifradores não teriam tanta matéria com que se alimentar (há mesmo quem fique viciado).
O jornalismo da decifração (e sirvo-me aqui de uma categoria que já tem o seu teórico reputado: o ensaísta e cronista francês Christian Salmon) chega a convencer muita gente de que está a desvelar a verdade da política, a sua essência, e que esta é um emaranhado de signos a decifrar ou uma construção narrativa que só precisa de ser modalizada por narradores competentes.
Evidentemente, como já todos percebemos por experiência própria, ou acompanhamos o enredo sem interrupções ou perdemos o fio à história e tudo à sua volta se torna para nós um ruído insuportável. Deixamos então de querer saber, de querer ouvir, abominamos os autores dos escândalos e dos casos, os seus descobridores e os seus decifradores. Às vezes, deixamos de acompanhar os enredos e centramo-nos no meio, isto é, no medium, nas técnicas, nos dispositivos, nos aspectos físicos e materiais. O medium da política, tal como o medium da comunicação, funciona bem quando não se dá por ele. Se se torna evidente, se não conseguimos ver outra coisa, então é porque está tudo errado. E a “vida política” surge então aos nossos olhos como um espectáculo banal de simulações e de encenações primárias.
Tempos houve em que deplorávamos o excesso de cinismo e de cálculo político. Hoje já temos saudade desses vícios porque as novas formas de exibição nem estão à altura deles. E também já não se trata de propaganda ou de publicidade, como outrora, mas de simples simulação. A coisa não é muito bonita de se ver porque o que se exibe ostensivamente é o espaço vazio da política. E o triunfo deste jornalismo da decifração, com a sua horda de decifradores, não ajuda nada.
Para introduzir uma nota um pouco mais erudita neste assunto, fui ver num dicionário qual era a etimologia de “escândalo”. Fiquei a saber que vem da palavra grega skandalon, que designa a pedra em que se tropeça no meio do caminho porque é um obstáculo e obriga a uma paragem. É neste estado coxo ou de imobilidade de quem tropeça que nos encontramos há muito tempo.