Se não saírem para a rua claramente contra quem faz esta escalada, pondo o nome às coisas, e Putin e a Federação Russa são os nomes, na verdade não é a paz que desejam, mas uma vitória militar russa.
O facto de esta ser uma pergunta retórica mostra a absoluta fragilidade da posição do PCP e das organizações a ele ligadas, como o Conselho Português para a Paz e Cooperação, sobre a guerra da Ucrânia em matéria de paz. O que aconteceu nesta semana com o discurso de Putin, a sua intenção de fazer referendos-fantoches e a clara ameaça de uma guerra nuclear colocam o mundo mais perto de um conflito catastrófico do que alguma vez esteve desde a crise dos mísseis em Cuba em 1962.
Se isto não é um ataque à paz, não sei o que possa ser. E neste caso não adianta vir com duplicidades e falsas equivalências: não foram a Ucrânia, nem a NATO, nem os EUA que fizeram esta escalada, mas apenas o Presidente da Federação Russa, que não se limitou a ameaçar com um conflito nuclear, insistindo que o que estava a dizer não era um bluff, era para tomar a sério. Aliás, quem, desde o primeiro dia deste conflito, resultado de uma agressão militar da Rússia à Ucrânia, fez ameaças nucleares foram Putin, Lavrov e aquele belicista sem paralelo no lado de “cá”, Medvedev, vice-presidente do Conselho de Segurança russo. Sim, a guerra nuclear, aquela guerra que mata milhões, destrói as grandes cidades do mundo e não tem vencedores, a coisa mais próxima de nos mandar para a ficção científica catastrófica, e para a Idade da Pedra. Senhores que enchem a boca pela paz, há alguma coisa que se compare em dimensão com estas ameaças, do lado da NATO, dos EUA, da UE? Claro que não há, e não há hipócritas comparações nem duplicidades que possam ocultar este facto: se não saírem para a rua claramente contra quem faz esta escalada, pondo o nome às coisas, e Putin e a Federação Russa são os nomes, na verdade não é a paz que desejam, mas uma vitória militar russa.
A sequência perigosa está toda no discurso de Putin. Os referendos-fantoches — e uso a palavra fantoches porque é isso mesmo que são; mesmo que admita que uma parte dos habitantes do Donbass prefere ser russa a ucraniana, não é em guerra e numa ocupação militar que o seu voto tem qualquer valor — vão justificar a anexação de territórios ucranianos à Federação Russa.
Só um parêntesis: se o mesmo tipo de referendos fosse feito em certas zonas geográficas da Federação Russa, como o Cáucaso, também os habitantes votariam ou pela independência ou pela anexação, por exemplo, pela Turquia. A Tchetchénia foi mantida na Federação pela guerra, pela violência e pela repressão.
Os referendos têm apenas o papel de pseudolegitimar conquistas territoriais de um Estado sobre outro, o mais clássico motivo para uma guerra imperialista. E a reivindicação de uma espécie de “droit de regard” armado para “proteger os ‘russos’” é, neste contexto, exactamente o que Hitler fez nos Sudetas. Aliás, onde está Putin coloquem Hitler e as frases são idênticas no verbo e na substância. Logo a seguir à anexação, Putin passa a considerar esses territórios russos, que hoje vão muito para além do Donbass e se estendem a zonas onde se fala ucraniano e onde não há sentimentos pró-russos, mas que Putin quer anexar à Federação porque tem uma posição estratégica relativa à Crimeia e ao acesso da Ucrânia ao mar. E, depois, um ataque a Lugansk é um ataque à Rússia, logo a possibilidade de uma resposta nuclear é possível. “Não é um bluff.”
Repito: quando é que o PCP sai para a rua para condenar Putin por colocar o mundo perto de um conflito nuclear? Silêncio. Nem pensar. Seria “fazer o jogo da NATO”. Eu percebo-os. Não tenho dúvidas de que a última coisa que desejavam era esta guerra, porque o PCP e os seus companheiros de estrada sabem que ela teve o efeito contrário ao pretendido, não vai acabar bem para Putin e a probabilidade de ter sido o balão de oxigénio de que a NATO precisava verifica-se todos os dias. Por outro lado, neste contexto, não querem que Putin perca de forma muito evidente e clamorosa. Duvido que apoiem a escalada belicista de Putin, mas também os incomoda muito a eficaz ofensiva ucraniana. É um mecanismo não só político, mas também psicológico, daquilo que tanto pode ser interpretado como comportamento dos indivíduos quando se metem numa argumentação sem saída e, em vez de a corrigirem, sobem de tom e caminham ainda mais para o abismo. O mesmo para aquilo a que antes se chamava “psicologia de massas”. Ou seja, estão metidos num imbróglio que não tem saída feliz, mas que tem um ponto forte: não querem que a Ucrânia ganhe. Não o podem dizer, mas é exactamente isso que desejam, de desejo forte, inominável, feio.
Por isso, estão bloqueados no plano político. Já os comparei aos enfeitiçados pela Bruxa de Blair, paralisados contra uma parede numa cave em ruínas.