A Iniciativa Liberal e a sua demagógica cultura do mérito
A propósito da Convenção da IL que decorreu no fim de semana de 02/25 veio-me à memória a cultura do mérito tão do agrado nas intervenções do partido. Rui Rocha afirmou que “quem tem mérito não entrega a maior parte do seu trabalho ao Estado”, o que pode significar que quem trabalha no Estado não é avaliado pelo seu mérito, ou, na pior das hipóteses não tem mérito.
Em 2023, na Madeira, a Iniciativa Liberal (IL), pela voz da sua ‘número quatro’, Madalena Santos, denunciava ‘a promoção do carreirismo’ na Região, defendendo como alternativa o ‘mérito’ e a ‘capacitação’.
O mérito é uma das palavras que consta em vários pontos do programa do partido embora com diferentes sentidos e contextos, colocando grande ênfase nessa valia. Para a IL o mérito é fundamental numa sociedade para que o esforço individual e a competência sejam recompensados.
Há uma boa dose de utopia nas propostas e no programa do partido IL ao assinalar que “No país que queremos construir, a cultura do mérito derrotará a cultura do compadrio. Qualquer que seja a função, se não forem os melhores a desempenhá-la perdem os próprios, mas perde sobretudo o país.”.
“Os portugueses não podem ser punidos pelo seu mérito, pelo seu sucesso e pelo seu trabalho. Queremos por isso recuperar uma cultura de sucesso - sucesso esse que os portugueses conhecem fora do país, onde são mais produtivos, reconhecidos e recompensados, optando frequentemente por não voltar.”
Vejam-se ainda algumas citações do Programa Eleitoral Legislativas 2024 da Iniciativa Liberal:
“… para tal, será necessário criar carreiras atrativas do ponto de vista da remuneração, do reconhecimento do mérito e da qualidade de serviço, de métodos de avaliação transparentes e contínuos…”
“… deve alterar-se as regras de progressão automática na carreira,
passando a progressão a alicerçar-se em critérios de mérito e qualificação profissional”.
“O recrutamento para a Administração Pública deve basear-se no mérito e na efetiva igualdade de oportunidades, através de uma avaliação que será feita por painel independente da CRESAP, com recurso a profissionais de reconhecido mérito nos diversos sectores”.
Como tem sido defendido pela IL um dos princípios fundamentais do liberalismo é a redução do Estado às suas funções mínimas deixando à iniciativa privada e empresarial muitos dos serviços prestados pelo Estado onde parece a meritocracia não impera.
Na saúde diz querer “promover a liberalização da saúde em Portugal, promovendo um vigoroso mercado que atenda às necessidades dos portugueses”.
Na educação pretende uma “reforma da Educação em Portugal, que passa por mudar o financiamento do Estado para o financiamento do aluno, o que permitirá às famílias poderem matricular os seus filhos nas escolas que quiserem, sejam públicas, privadas ou sociais, sabendo que são igualmente comparticipadas pelo Estado”.
Na Segurança Social “defende uma reforma, sobretudo no que diz respeito ao seu financiamento, que passa por…, acrescentar uma componente de capitalização para aumentar a segurança das pessoas, e desonerar outros instrumentos de poupança. A Iniciativa Liberal entende igualmente que a prestação de assistência social deve… recorrer mais a prestadores privados e sociais”.
Nas Empresas Públicas “defende que o Estado não deve politizar a economia, e não deve interferir, como participante, em mercados competitivos, como são a banca, os transportes, a comunicação social, e tantos outros. O Estado deve sim assegurar a livre iniciativa, mercados abertos e competitivos, as liberdades e direitos dos envolvidos.”.
Na Assistência Social “defende que a assistência social aos mais desprotegidos é uma atividade que deve ser desenvolvida ao nível mais local, e deve envolver entidades privadas e cooperativas…”.
Nesta sequência deduz-se que o mérito será um fator da qualidade daí resultantes e a IL pretende que deixe de ser ao nível do compadrio e se alterem as regras de progressão automática na carreira, passando a progressão a alicerçar-se em critérios de mérito e qualificação profissional.
Deixa transparecer que o preenchimento de lugares no Estado e a admissão e a progressão das carreiras são por “cunha” e por vias em que o mérito não é tomado em consideração.
No entanto, uma análise sobre o que se passa no sistema empresarial privado, o mérito também não é sempre considerado o elemento primordial para a admissão e progressão nas carreiras. Muitas vezes, fatores como conexões pessoais, preferências subjetivas e até preconceitos inconscientes podem influenciar essas decisões. Embora a Iniciativa Liberal defenda firmemente a integração do mérito como a base para o recrutamento e progressão, é reconhecido que a implementação prática desta ideologia enfrenta desafios substanciais. As admissões e progressões nas carreiras estão também muitas vezes subordinadas à vontade dos empresários e ao compadrio. Todavia a proposta da IL é que, em qualquer função, os melhores devem ser escolhidos para desempenhá-la, garantindo assim o progresso e o desenvolvimento do país.
O conceito de mérito é amplo sendo muitas vezes alvo de interpretações variadas e, por isso, pode ser extremamente subjetivo e sujeito a pontos de vista ideológicos. A subjetividade do mérito pode ser também influenciada por vários fatores, incluindo contextos culturais, históricos e sociais. Outra questão é o de como se pode avaliar o mérito.
Avaliar e medir o mérito pessoal e profissional pode ser um processo multifacetado e devem ser considerados alguns aspetos-chave. Além disso, a avaliação do mérito pode estar imbuída de preconceitos inconscientes, influenciando os julgamentos de capacidade e desempenho. Ao avaliar o mérito, surgem perguntas inevitáveis: Quem define o que constitui mérito? Quais são os critérios objetivos e subjetivos utilizados? E como se pode garantir que esses critérios sejam aplicados de forma justa e equitativa?
O conceito de mérito gira em torno da ideia de que os indivíduos devem ser recompensados com base nas suas aptidões, esforços e realizações, e não em fatores arbitrários, como status social, riqueza ou relacionais. A meritocracia, um sistema construído sobre esse princípio, teoricamente visa criar uma sociedade justa, onde oportunidades e recompensas são distribuídas de acordo com o mérito de cada um. Assim, numa meritocracia, aos indivíduos são concedidas posições de poder, influência ou recompensa apenas com base nas suas competências e realizações e não com base na sua origem social, cultural, económica ou características pessoais irrelevantes. Pressupõe a possibilidade de igualdade de oportunidade, isto é, as pessoas devem ser capazes de competir em igualdade de condições por cargos e posições vantajosas.
Num sistema meritocrático, vários elementos-chave de com base no seu desempenho, habilidades e contribuições. Isso requer métodos de avaliação transparentes e imparciais, como testes padronizados, avaliações de desempenho e critérios entram em jogo que são difíceis de implementar para que se evitem os problemas enunciados pelo partido IL, todos eles são falíveis e podem não conduzir à justiça desejável.
É quase impossível praticar a meritocracia quando o tecido empresarial privado é dominante e se requer responsabilidade em todos os níveis, líderes e decisores que devem ser responsabilizados pelas suas ações e decisões, garantir que eles ajam no melhor interesse da comunidade. Não é claro que na complexidade do sistema privado e liberalizado as oportunidades de formação, orientação e desenvolvimento de competências para ajudar os indivíduos a atingir todo o seu potencial possa ir no sentido de contribuir de forma mais eficaz para a sociedade.
Embora o conceito de mérito seja atraente, implementar uma verdadeira meritocracia pode ser um desafio, mas fatores como normas e procedimentos estabelecidos que favorecem certos grupos de pessoas sobre outros, geralmente de forma inconsciente ou implícita. Podem surgir desvios em várias áreas, como emprego, educação, justiça criminal e saúde, e podem perpetuar desigualdades baseadas na raça, género, classe social, orientação sexual, entre outros. Combater esses desvios exige uma revisão crítica e contínua das práticas e políticas existentes para garantir que promovam a justiça e igualdade para todos. Não se vê, portanto, como a IL possa modificar uma estrutura minada pelos desvios para implementar o referido mérito no sistema empresarial privado e público.
Como conclusão, a difusão da mensagem da IL sobre o mérito é de caráter doutrinário, simplesmente partidário e demagógico não tem uma aplicação prática e tão fácil como este partido pretende divulgar.