Pouco a pouco, a noção de reformas estruturais passou a ser usada na UE para abarcar um leque vasto de prioridades de intervenção pública, muitas vezes contraditórias entre si.
Há palavras e expressões que muita gente usa mas pouca gente sabe explicar. Reformas estruturais é uma delas.
O problema não é específico de Portugal. Dois investigadores da Universidade Livre de Bruxelas, Amandine Crespy e Pierre Vanheuverzwijn, publicaram em 2019 um estudo onde analisam o uso dado ao longo dos anos à expressão “reformas estruturais” por diferentes pessoas e instituições, em particular na União Europeia (UE). As respostas que obtiveram de políticos e altos quadros da UE e dos Estados-Membros, quando desafiados a definir o conceito, são embaraçantes pela sua vacuidade.
Há diferentes motivos para que aquela expressão tão recorrente seja utilizada com tanta falta de precisão. O primeiro motivo é retórico.
A partir da década de 1980, “reformas estruturais” foi o eufemismo encontrado para legitimar junto dos cidadãos um conjunto de medidas impopulares. Expor os produtores nacionais à concorrência global sem limites, desregular as relações laborais, liberalizar o mercado da habitação, promover o sector financeiro, privatizar empresas e serviços públicos, reduzir a protecção social, ou dar prioridade à redução da dívida pública em vez do combate ao desemprego, tornaram-se parte da agenda política de muitos partidos, governos e instituições internacionais. Esta vaga neoliberal rompeu com as décadas do pós-2.ª Guerra Mundial, quando grande parte dos países apostava na intervenção do Estado para promover o desenvolvimento económico e a distribuição de rendimentos, e para combater as recessões e o desemprego.
A mudança de rumo – que começou no Reino Unido e nos EUA pelas mãos de Thatcher e Reagan, estendendo-se a grande parte dos países em desenvolvimento por pressão externa, e à UE por vontade própria – criou resistências em diferentes sectores da sociedade, em particular junto dos trabalhadores e das empresas mais vulneráveis. Foi então necessário encontrar formas de neutralizar a contestação – e a retórica foi uma das vias. Em vez de “desproteger os trabalhadores”, falava-se em “diminuir a rigidez do mercado de trabalho”. Em vez de “cortar nos apoios e nos serviços públicos”, falava-se em “promover a responsabilidade individual” ou “permitir a livre escolha”. De uma forma geral, em vez de “desregular, liberalizar e privatizar”, passou-se a falar de “reformas estruturais”.
A utilização eufemística da expressão não desapareceu até hoje, mas as coisas evoluíram. Quatro décadas de fraco crescimento da produtividade, de instabilidade financeira, de estagnação salarial, de aumento das desigualdades sociais e de degradação ambiental retiraram glamour às soluções políticas que se baseiam na imposição da concorrência de todos contra todos, em todas as esferas da vida em sociedade.
Em vez de abandonar o conceito, a UE mudou a retórica. Nos documentos comunitários, a expressão “reformas estruturais” passou a ser utilizada para referir todas as alterações nas políticas públicas que visam responder a problemas considerados estruturais – ou seja, que são persistentes e têm grande impacto. Os problemas em causa incluem, como antes, a competitividade da economia e a sustentabilidade das finanças públicas, mas não só. O envelhecimento demográfico, a pobreza e a exclusão social, as desigualdades na distribuição dos rendimentos ou as alterações climáticas passaram a ser referidos como desafios estruturais das sociedades europeias que precisam de ser enfrentados.
Pouco a pouco, a noção de reformas estruturais passou a ser usada na UE para abarcar um leque vasto de prioridades de intervenção pública, muitas vezes contraditórias entre si. Nas recomendações que a Comissão Europeia faz anualmente aos Estados-Membros, surgem com frequência orientações de sentido oposto – umas apelando à consolidação orçamental, outras ao reforço da protecção social e do investimento público; umas sugerindo maior liberalização do mercado de trabalho, outras o reforço da negociação colectiva; umas defendendo a utilização de mecanismos de mercado para controlar as emissões de carbono, outras uma intervenção directa dos Estados sob a forma de regulação estrita ou até da proibição de certas actividades poluentes.
Para as instituições europeias, o uso ambíguo do conceito de “reformas estruturais” não é um problema, é uma conveniência. A utilização de uma expressão apelativa para fins tão distintos permite navegar entre uma enorme variedade de valores, culturas nacionais e orientações políticas, passando a ideia – quase sempre errónea – de que o papel da UE é fomentar a adopção pelos Estados-Membros de soluções adequadas, sem interferir nas escolhas democráticas de cada país.
Mas a falta de precisão quando se fala de reformas estruturais não decorre apenas de estratégias retóricas, mais ou menos deliberadas. Na maior parte dos casos é apenas falta de conhecimento ou de reflexão aprofundada sobre os assuntos em causa.
A maioria dos políticos e comentadores não hesita em defender que “são necessárias reformas estruturais” em várias áreas. Experimentem perguntar-lhes o que entendem por reformas estruturais, que reformas defendem em concreto e por que motivos. O mais provável é balbuciarem, sem conseguirem responder à questão. Ou confundirem reformas estruturais com problemas de natureza estrutural. Ou defenderem medidas que já estão no terreno e não sabem. Ou sugerirem iniciativas que pouco alteram o que já existe. Ou ainda apontarem soluções de viabilidade duvidosa.
O facto de um problema ou desafio ter uma natureza estrutural não significa que a melhor resposta passe por rupturas no modo de governar as áreas em causa. Nenhuma reforma explica por si só o progresso admirável que Portugal registou nas últimas décadas em domínios como a redução do abandono escolar e da mortalidade infantil, ou o aumento da produção científica e da inovação empresarial.
Por definição, os problemas estruturais demoram anos a resolver. Mais do que grandes rupturas pontuais, é necessário persistência e coerência ao longo do tempo. Fazer bem o que já está previsto é menos sexy do que anunciar receitas milagrosas para tudo e mais alguma coisa, sem detalhar muito o que se diz nem discutir as suas implicações. Mas para o desenvolvimento do país, em muitos casos, importa mais ter boas políticas do que grandes reformas.
O autor é colunista do PÚBLICO