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Clara Ferreira Alves escreveu este artigo em março de 2017 no semanário Expresso. Será que atualmente ainda pensa assim?
Tão felizes que nós eramos
Clara Ferreira Alves
In Semanário Expresso
18 MARÇO 2017
"Anda por aí gente com saudades da velha portugalidade. Saudades do nacionalismo, da fronteira, da ditadura, da guerra, da PIDE, de Caxias e do Tarrafal, das cheias do Tejo e do Douro, da tuberculose infantil, das mulheres mortas no parto, dos soldados com madrinhas de guerra, da guerra com padrinhos políticos, dos caramelos espanhóis, do telefone e da televisão como privilégio, do serviço militar obrigatório, do queres fiado toma, dos denunciantes e informadores e, claro, dessa relíquia estimada que é um aparelho de segurança.
Eu não ponho flores neste cemitério.
Nesse Portugal toda a gente era pobre com exceção de uma ínfima parte da população, os ricos. No meio havia meia dúzia de burgueses esclarecidos, exilados ou educados no estrangeiro, alguns com apelidos que os protegiam, e havia uma classe indistinta constituída por remediados. Uma pequena burguesia sem poder aquisitivo nem filiação ideológica a rasar o que hoje chamamos linha de pobreza. Neste filme a preto e branco, pintado de cinzento para dar cor, podia observar-se o mundo português continental a partir de uma rua. O resto do mundo não existia, estávamos orgulhosamente sós. Numa rua de cidade havia uma mercearia e uma taberna. Às vezes, uma carvoaria ou uma capelista. A mercearia vendia açúcar e farinha fiados. E o bacalhau. Os clientes pagavam os géneros a prestações e quando recebiam o ordenado. Bifes, peixe fino e fruta eram um luxo.
A fruta vinha da província, onde camponeses de pouca terra praticavam uma agricultura de subsistência e matavam um porco uma vez por ano. Batatas, peras, maçãs, figos na estação, uvas na vindima, ameixas e de vez em quando uns preciosos pêssegos.
As frutas tropicais só existiam nas mercearias de luxo da Baixa. O ananás vinha dos Açores no Natal e era partido em fatias fininhas, para render e encharcado em açúcar e vinho do Porto para render mais. Como não havia educação alimentar e a maioria do povo era analfabeta ou semianalfabeta, comia-se açúcar por tudo e por nada e, nas aldeias, para sossegar as crianças que choravam, dava-se uma chucha embebida em açúcar e vinho. A criança crescia com uma bola de trapos por brinquedo, e com dentes cariados e meia anã por falta de proteínas e de vitaminas. Tinha grande probabilidade de morrer na infância, de uma doença sem vacina ou de um acidente por ignorância e falta de vigilância, como beber lixívia. As mães contavam os filhos vivos e os mortos era normal. Tive dez e morreram-me cinco. A altura média do homem lusitano andava pelo metro e sessenta nos dias bons. Havia raquitismo e poliomielite e o povo morria cedo e sem assistência médica. Na aldeia, um João Semana fazia o favor de ver os doentes pobres sem cobrar, por bom coração.
Amortalhado a negro, o povo era bruto e brutal.
Os homens embebedavam-se com facilidade e batiam nas mulheres, as mulheres não tinham direitos e vingavam-se com crimes que apareciam nos jornais com o título ‘Mulher Mata Marido com Veneno de Ratos’. A violação era comum, dentro e fora do casamento, o patrão tinha direito de pernada, e no campo, tão idealizado, pais e tios ou irmãos mais velhos violavam as filhas, sobrinhas e irmãs. Era assim como um direito constitucional. Havia filhos bastardos com pais anónimos e mães abandonadas que se convertiam em putas. As filhas excedentárias eram mandadas servir nas cidades. Os filhos estudiosos eram mandados para o seminário. Este sistema de escravatura implicava o apartheid. Os criados nunca dirigiam a palavra aos senhores e viviam pelas traseiras.
O trabalho infantil era quase obrigatório porque não havia escolaridade obrigatória. As mulheres não frequentavam a universidade e eram entregues pelos pais aos novos proprietários, os maridos. Não podiam ter passaporte nem sair do país sem autorização do homem. A grande viagem do mancebo era para África, nos paquetes da guerra colonial. Aí combatiam por um império desconhecido. A grande viagem da família remediada ao estrangeiro era a Badajoz, a comprar caramelos e castanholas.
A fronteira demorava horas a ser cruzada, era preciso desdobrar um milhão de autorizações, era-se maltratado pelos guardas e o suborno era prática comum.
De vez em quando, um grande carro passava, de um potentado veloz que não parecia sujeitar se à burocracia do regime que instituíra uma teoria da exceção para os seus acólitos. O suborno e a cunha dominavam o mercado laborai, onde não vigorava a concorrência e onde o corporativismo e o capitalismo rentista imperavam. Salazar dispensava favores a quem o servia. Não havia liberdade de expressão e o lápis da censura aplicava-se a riscar escritores, jornalistas, artistas e afins. Os devaneios políticos eram punidos com perseguição e prisão. Havia presos políticos, exilados e clandestinos. O serviço militar era obrigatório para todos os rapazes e se saíssem de Portugal depois dos quinze anos aqui teriam de voltar para apanhar o barco da soldadesca. A fé era a única coisa que o povo tinha e se lhe tirassem a religião tinha nada. Deus era a esperança numa vida melhor. Depois da morte, evidentemente. "
Os opositores do 25 de Abril e da democracia que restam dos velhos tempos, e gente nova, disfarçada, andam por aí!
O 25 de ABRIL e os CONTRA
Em que área do espectro político/partidário se posicinam hoje esses contra?
A Tempestade Perfeita
de Daniela Santiago
O livro da Daniela Santigo "explora os contornos sociais e políticos protagonizados por André Ventura e Santiago Abascal que sairam da sombra de partidos de direita moderada"
e ainda
Quando Portugal Ardeu
de Miguel de Carvalho
Um livro a ler, um documento essencial.
Compreender as Histórias e a violência do pós-25 de ABRIL
O ELP, MDLP, IGREJA, EX-agentes da PIDE e da Legião são alguns dos protagonistas da contra-revolução de Abril
As extrema-direita e a extrema-esquerda em choque
Um livro de consulta obrigatório para os jovens que vivem hoje em liberdade e em democracia.
O Governo tem sido assediado, pelos mais diversos setores da comunicação social e partidários, (talvez por que o povo lhe conferiu maioria absoluta), que trazem casos e casinhos que surgem fugazmente e logo somem dos noticiários, mas que, são irrelevantes e nada dizem à maioria da população, mas que aos poucos a vai envenenando. Estas atuações têm dados os seus frutos. No passado, não muito afastado, outros que fizeram o mesmo ou pior foram e são ainda poupados ao massacre quotidiano, em particular todos os que dizem “estar do lado certo”. Por outro lado, os que mais gritam e proferem autênticas aberrações sem contemplações para coma a democracia são tidos como sendo os grandes opositores ao Governo. Para este fator têm sido relevantes, para além dos media, a direita democrática e as esquerdas radicais cujas formas de oposição têm sido uma oportunidade para a extrema-direita.
Um dos garantes da democracia e que deve contribuir para a estabilidade social, política e governativa são os Presidentes da República tem-se apresentado com vários estilos.
Há Presidentes da República que se fecham numa espécie de “bunker” e raramente aparecem e, quando o fazem, ostentam uma postura de superioridade, de senhores da verdade e debitados os verbalismos regressam ao seu mundo no refúgio da casa da presidência. Há os que escolhem o tempo e a medida das palavras que proferem, esclarecem, preparam e avisam. Há os que falam compulsivamente, que comentam sobre tudo, que agem numa espécie de construção comentadora do tipo IA (Inteligência Artificial) que a tudo atenta. Encontram-se com uma propensão irresistível herdada de um passado recente. Para estes últimos atingir o ponto máximo da excitação da popularidade é essencial. Vão num sentido, atentam, consultam observam, questionam e, de seguida avisam, propõe, ameaçam. Noutros momentos elogiam. Dizem que tudo vai bem e, semana depois algo já não vai bem, avisam que está mal e, mais uma vez, ameaçam como sendo uma sugestão. Tudo dentro da legalidade e da oportunidade mediática que aproveita para a sua agenda de títulos onde os verbos repreender, recadear (o Governo) são as joias da coroa das peças noticiosas da comunicação social, especialmente as dos jornais televisivos.
Há ainda os que, funâmbulos, tentam manter um equilíbrios entre o Governo e a oposição, sobretudo a de direita, olhando para as sondagens e para as opiniões mais ou menos desastradas que se ouvem através dos vários públicos: nos cafés, na rua, nos mercados, nos cabeleireiros, nas barbearias, etc.. O público é estimulado por movimentos sindicais, por outros mais ou menos sindicais, por comentadores alinhados com a oposição de direita, por peças televisivas com casos cirurgicamente selecionados que sempre ocorreram e a que, preparados ao momento, é dada uma relevância e que são amplificados pelos media, alguns na posse de ditos jornais de referência, para instigarem as populações contra a governação e dar oportunidade às oposições da sua preferência. A estes acrescem os grupos organizados nas redes sociais conotados com radicalismos e populismo de direita e de esquerda.
Ao discurso público que primava pela racionalidade sobrepôs-se o discurso com o objetivo do espetáculo com políticos transformados em atores para obtenção de audiências a que se acrescentam objetivos oposicionistas ao Governo dum partido que lhe retirou democraticamente a liderança. A clássica direita e centro-direita viram-se fragmentadas pelo aparecimento de formações populistas de extrema-direita e de direita liberal para quem o Estado Social é um obstáculo à produtividade e deveria ser “agilizada e recorrer mais a prestadores privados e sociais à iniciativa privada”.
A estes juntam-se a amplificação dada pelas redes sociais onde se sente a ilusão de participação que Pacheco Pereira recentemente caracterizou como “sistema conhecido como “redes sociais” não só amplifica como gera uma mutação comportamental. Essa mutação favorece o populismo com dois efeitos poderosos: um é a ideia de que, escrevendo e publicando nos múltiplos locais de “conversa” e imprecação, se está a participar; outro é um igualitarismo agressivo, tribal, radicalizado, que destrói qualquer ideia de mediação e qualquer discurso democrático. Pode dizer-se que a “canalha” sempre falou assim, mas o altifalante que tem hoje impede que se ouça qualquer outra coisa, e isto é novo.”
Media de jornalismo impresso conhecidos como jornais de referência estão a ser politizados, o que é normal se considerarmos que as ações humanas estão impregnadas de política, mas os indícios de partidarização ideológica são cada vez mais evidentes. Nos noticiários televisivos surgiram há algum tempo a que chamam verificação de dados e que de facto o deveriam ser, mas que estão a ser adulterados pelos jornalistas que procedem às escolhas e ao modo como tratam essa verificação dos assuntos para darem uma visão distorcida da funcionalidade do Estado e, consequentemente, do Governo e seus representantes, deixando no público, não raras vezes, a perceção de assistir a um contributo para moldar opiniões que ajudem a uma oposição ao Governo.
Para tudo isto, há insistentemente alvos obsessivamente utilizados que é o partido do Governo, o PS e a sua ala mais moderada, como sejam Fernando Media e António Costa. Mas, estes que agora se centram no PS também já dispararam em partidos como o PSD e o CDS/PP. Estas flechas, embora venham da direita, as incendiárias vêm de setores radicais de extrema-direita apontadas ao centro-direita e ao centro-esquerda que lhes estorvam os caminhos delirantes para a radicalização.
Os mandatos são para cumprir até ao fim. São sinistras as ideias que sugerem que o Presidente deve seguir as sondagens e saber se os seus favoritos estão bem colocados para ir a eleições.
Ao menor problema, o que se ouve em Portugal é um imediato pedido de demissão do ministro, do primeiro-ministro ou do Governo. Para as oposições, a demissão do ministro é quase o primeiro passo de uma luta. Este hábito, ou vício, é próprio de todas as oposições, qualquer que seja o governo em exercício. Tenha este uma maioria ou não, seja de um só partido ou de coligação.
Convencionou-se, há muitos anos, que fazer oposição era falar duro, o que se traduz por regras simples. Pedir a demissão do membro do governo. Exigir uma remodelação. Pedir que o primeiro-ministro e seu governo sejam substituídos. E exigir a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições.
Esta liturgia é quase independente da força do partido de oposição. Seja o deputado único, seja o grupo parlamentar de meia dúzia de deputados, seja finalmente o partido com 80 deputados, em todos os casos a exigência da demissão ou da dissolução é considerada a mais forte voz de oposição.
Os partidos que todas as semanas pedem demissões, exigem remodelações e procuram convencer o Presidente a demitir o Governo ou a dissolver o Parlamento (que não são a mesma coisa, pode haver uma sem outra) não mostram outra coisa que não seja a impaciência, a sofreguidão e a vacuidade política. Aquilo que se chama na gíria política “elevar a voz”, “ser duro com o governo” e “fazer verdadeira oposição” tem, entre nós, uma versão muito especial: pede-se a demissão e a dissolução. O problema é que se percebe logo: é quem não sabe o que fazer.
É verdade que, em vários sectores, a acção do Governo actual se tem revelado desastrosa. Alguns ministros foram ou são manifestamente incompetentes ou têm visões estranhas do interesse nacional e do bem público. Já ninguém duvida de que este Governo e o seu partido têm uma estranha concepção de família política e de legitimidade partidária. Mas também é certo que alguns ministros se portam bem, desempenham com honra e eficiência as suas funções e se mostram capazes de gerir a Administração.
Nada do que precede justifica uma dissolução. Por vezes, nem sequer uma remodelação. Estamos muitas vezes diante de políticas, de doutrinas e de visões particulares do interesse público. Tudo isto faz parte do que deve ser avaliado em eleições a realizar a seu tempo. Nestas, confirmam-se os vitoriosos e despedem-se os que erram. Chamam-se novos, substituem-se velhos e castigam-se incompetentes.
Entre os que reclamam demissões e dissolução, um argumento frequente é o de que já não se pode garantir o “regular funcionamento das instituições democráticas”. Quem o invoca, não necessita argumentar: o peso da acusação basta-se a si própria. Ora, tal não é verdade. O regular funcionamento das instituições democráticas está sobretudo ligado à demissão do governo, isto é, à competência do Presidente da República para demitir o governo. No caso da dissolução da Assembleia da República, esta ressalva do “regular funcionamento” não está explícita na Constituição. Isto é, a dissolução é um “acto livre” do Presidente, apenas limitado pela necessidade de, previamente, ouvir o Conselho de Estado e os partidos, sem que tenha de obedecer ou seguir o que dizem as pessoas ouvidas. Mas é um “acto livre” de gravidade extrema para uma situação muito grave.
Mesmo não sendo rigoroso, o argumento do “regular funcionamento” tem efeitos e assusta. Mas é totalmente desadequado. Na verdade, o que mais está em causa, hoje, são as políticas, não as instituições. O Serviço Nacional de Saúde, a funcionar tão mal, não é uma instituição democrática. As escolas, em crise evidente, também não. A TAP, a CP e os transportes públicos, em situação caótica, não são instituições democráticas. São empresas, entidades e serviços públicos essenciais para a felicidade dos povos, para o bem-estar e para a economia. Mas não são instituições democráticas. Fernando Medina e Pedro Nuno Santos cometeram erros e são responsáveis por uma gestão muito controversa da política pública e da sua carreira. Mas não são instituições democráticas. Tiago Brandão Rodrigues e Marta Temido tiveram uma gestão desastrada dos seus ministérios, mas não são instituições democráticas. O Aeroporto de Lisboa, a covid e a guerra na Ucrânia são assuntos graves, temas em que o governo se pode portar bem ou mal, mas não se trata de instituições democráticas.
Estas são as que garantem os direitos fundamentais dos cidadãos, as que fazem funcionar o sistema político, as que asseguram as grandes funções do Estado como a Justiça, a Administração Pública, a moeda, as forças armadas e a ordem pública. Quando o seu funcionamento deixa de ser regular, quando a ilegalidade invade estas instituições, quando estas ameaças não são devidamente contrariadas pelos poderes políticos, pelo Parlamento e pelo Governo, então aí sim, impõe-se uma dissolução do Parlamento ou a substituição do governo. Mas mesmo nesses casos, o que realmente se impõe não é a opinião do Presidente da República. O que se impõe é um veredicto popular e uma renovação da vontade dos cidadãos.
Entre os dispositivos que mais contribuíram para o prestígio da democracia conta-se a realização de eleições livres, com datas conhecidas e regras definidas. Assim como a ideia de mandato. Isto é, uma pessoa e um partido são eleitos com base nas identidades, na história e no programa, assim como no cumprimento do mandato conferido. Este não se mede semanalmente, nos jornais e nas televisões, com sondagens. O cumprimento dos mandatos mede-se periodicamente, em eleições, ao fim de um certo tempo conhecido. E os mandatos são para cumprir até ao fim. Salvo casos absolutamente graves e excepcionais. Ou então em situação de total impasse das instituições. Por exemplo, na impossibilidade de um governo passar no Parlamento e ter Orçamento e confiança.
O Presidente da República, qualquer que seja o seu estilo, pode perfeitamente dar recados, tentar influenciar, fazer sugestões, chamar à atenção e até criticar. Tudo em recato. Por vezes até com algum grau, moderado, de publicidade. Mas não tem nem deve envolver-se na política e nas políticas, fazer opções, destinar, impedir e fomentar. A reserva presidencial é um dos mais valiosos dispositivos constitucionais que importa valorizar e proteger. São sinistras as ideias que sugerem que o Presidente da República deve calcular as hipóteses de haver alternativas, deve seguir as sondagens da semana e deve saber se os seus favoritos estão bem colocados para ir a eleições.
Derrubar o Governo mesmo que isso signifique estuporar a democracia (II)
José Pacheco Pereira
in Jornal Público
Pode dizer-se que a “canalha” sempre falou assim, mas o altifalante que tem hoje impede que se ouça qualquer outra coisa, e isto é novo.
(...)
9.A enorme crise de racionalidade no discurso público não vem de agora, e foi já há muito teorizada à volta da “sociedade-espectáculo”, mas existe hoje um efeito potenciador que não existia, quando era a televisão o principal veículo dessa patologia do espaço público democrático. Esse efeito assenta na ilusão de participação, que sempre esteve presente mesmo imperfeitamente nos meios de comunicação tradicional, mas que agora o sistema conhecido como “redes sociais” não só amplifica como gera uma mutação comportamental. Essa mutação favorece o populismo com dois efeitos poderosos: um é a ideia de que, escrevendo e publicando nos múltiplos locais de “conversa” e imprecação, se está a participar; outro é um igualitarismo agressivo, tribal, radicalizado, que destrói qualquer ideia de mediação e qualquer discurso democrático. Pode dizer-se que a “canalha” sempre falou assim, mas o altifalante que tem hoje impede que se ouça qualquer outra coisa, e isto é novo.
10.O resultado deste processo é transformar toda a comunicação numa extensão das cloacas das redes sociais, num ciclo alimentar quotidiano que se presta às mil maravilhas à politização radical. É o que acontece hoje em Portugal, estuporando a democracia, para tentar derrubar um governo ao mesmo tempo medíocre e legítimo. É verdade que o Governo é medíocre, mas está longe de ser o primeiro a sê-lo, e, em democracia, não havendo crise no funcionamento das instituições, que não há, os governos derrubam-se em eleições.
11.Capas, títulos, temas na chamada“comunicação social de referência”, que não tem resistido à pressão de uma ofensiva que é politizada de uma ponta à outra e que nada tem que ver com o jornalismo. É um processo suicidário para uma comunicação social séria. Um exemplo são os vários programas estão a ser criados dentro dos noticiários, partindo dos modelos de verificação de dados, para, pela escolha dos assuntos muitas vezes assentes em denúncias, dar uma imagem de disfuncionalidade do Estado, logo da responsabilidade do Governo. Portugal é o país onde tudo funciona mal, o que não é verdade, mas o efeito casuístico, sem cobertura estatística ou noutros dados, quase sempre sem uma verificação exigida pelas regras da deontologia, cria uma indústria de “denúncias”. Como o sector privado não entra nas avaliações, a não ser uns lares de idosos miseráveis, gera-se o efeito ideológico sem qualquer sustentação nos factos de que tudo no Estado funciona mal, e tudo no privado funciona bem.
12.Há alvos que são mais alvos do que outros. Aparentemente os alvos estão à esquerda, principalmente no PS, no BE, mas na verdade os ataques são para os sectores moderados no PS, porque são a espinha dorsal do partido no poder. Pedro Nuno Santos foi um alvo acidental, porque os alvos principais são Medina e Costa, como no passado foi Rio no PSD. É o centro-esquerda e o centro-direita, o empecilho para a radicalização, por isso, por tortuoso que seja o caminho, é lá que ele vai dar. Outros que fizeram o mesmo ou pior são poupados ao massacre quotidiano, em particular todos os que estão do lado “certo”. É por isso que não se queria que a comissão de inquérito da TAP chegasse à privatização, mesmo quando vários “casos” que não são “casinhos” atingiam a privatização e a gestão privada.
13.É um erro pensar que esta ofensiva vem do Chega. O Chega é um instrumento, é um parceiro menor que é necrófago. Está no fundo do mar alimentando-se dos cadáveres que se afundam. Vem de uma conjunção de pessoas, grupos elobbiesprivados que tem vindo a financiar de forma muito significativa um aparelho ideológico e de propaganda com peso significativo em certas universidades e num sistema comunicacional, muito profissionalizado e muito capaz, e que impregna toda a comunicação social. A ele se associam vários “intelectuais orgânicos” conhecidos pelas suas relações com a direita radical. Vários jornais deficitários, sem vendas nem viabilidade, juntam-se a projectos mais consistentes, onde políticos transvestidos de jornalistas fazemagit-prop, e que num mesmo dia fazem o ciclo da manhã na rádio, na tarde na RTP, à noite na SIC, TVI, na RTP. Um dos aspectos mais eficazes é a “conversa” na rádio nos horários nobres da manhã, usando com muita eficácia e profissionalismo o carácter intimista da rádio. Nos EUA, a rádio é um dos maiores investimentos do sector mais radical de apoio a Trump.
14.Esta ofensiva agrupa vários interesses, muitas vezes definidos por aquilo que são contra, muito parecidos com os financiadores do Partido Republicano de Trump, que pretendem aumentar a sua influência e manter intocável o seu direito virtual de veto em tudo o que mexa nos seus interesses, no plano empresarial, no plano laboral, nos impostos, nas obrigações e nos mecanismos de regulação. Por que razão Montenegro chama “comunista” a Costa? Porque esta é a linguagem de interesses feridos na habitação, na distribuição, nos portos, nos transportes, no turismo, na agricultura intensiva, sempre que há polémicas envolvendo vários empresários ou empresas destes sectores, como acontece com a especulação com os preços, com a desregulação dos arrendamentos, com as condições de trabalho dos imigrantes nas estufas do Alentejo, com a atitude do sector privado da saúde face à covid, com a especulação mobiliária, com as situações de assédio nas fábricas, com a actuação da ASAE, todo este sistema comunicacional grita “comunista” de uma forma mais sofisticada do que Montenegro, mas com o mesmo conteúdo.
Foto
Stephane BidouzeDR
15.Quando falo dos interesses, não implica homogeneidade da resposta do “capital” e do seu envolvimento nesta radicalização política. Esta não vem de cima, não vem dos émulos das grandes empresas, vem da versão nacional do empresário do MyPillow, apoiante de Trump. Os grupos económicos mais importantes, bancos e empresas do PSI20 podem ocasionalmente financiar algumas iniciativas deste sector mais radical, principalmente nas universidades, mas sabem de mais para se comprometerem, entre outras coisas porque sempre se deram bem com o PS, precisam de estabilidade política e não a trocam por um curso das coisas demasiado imprevisível.
16.A democracia pode suportar tudo isto? Em abstracto sim, no concreto não. Há hoje uma crise interior da própria democracia, com fenómenos novos, que dão uma dimensão muito perigosa ao que se está a fazer. Esta toxicidade tornará mais “inorgânica” a nossa democracia, ou seja, pior, mais estuporada. Parte desses estragos vão tirar poder ao voto, aos procedimentos da democracia, aos tempos da representação, aos partidos políticos e dá-lo a poderes fácticos que usam o populismo, para defenderem interesses.
O provérbio “quem não tem cão caça com gato” é usado como significado para dizer que quando falta um recurso para realizar um objetivo usa-se um meio alternativo, o importante é que seja feito. A caça é que não pode deixar de ser feita. Explicarei em pormenor mais adiante o que pretendo dizer.
Em democracia um qualquer governo é escrutinado por órgãos competentes como sejam a Assembleia da República, as oposições que devem ter também por missão esse papel. A estes os meios de comunicação social ajudam a esse escrutínio, bem como outros atores políticos e mediáticos.
"O Governo entende que o escrutínio da sua atividade pela Assembleia da República é um pilar fundamental do sistema democrático", afirmou o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, no debate do relatório intercalar de escrutínio da atividade do Governo na Assembleia da República.
Normalmente a prática do escrutínio envolve a identificação dos aspetos da atividade governativa, recolhendo e examinando provas, a fim de desenvolver uma compreensão do que o governo está a fazer, (ou não), ao abrigo do mandato democrático que lhe foi conferido pelo eleitorado. Fazem também prática do escrutínio os resultados dessa atividade (ou inatividade), e se o Governo está a desenvolver e implementar políticas que alcancem resultados desejáveis, nomeadamente exigindo explicações aos representantes do governo. Não basta gritar em todas as direções e vagamente que o Governo não faz as reformas necessárias. Sim, mas quais? O público fica sem saber o que estes que gritam entendem por reformas. A Assembleia da República é outro órgão que, para além de órgão legislativo, desempenha ainda a função política de controlo (inspeção e fiscalização) dos atos do Estado e é o órgão por excelência do debate político a nível nacional.
Há outros intervenientes como os meios de comunicação social e o público que escrutinam e podem influenciar direta ou indiretamente o governo. Porém, em Portugal, nem sempre é assim. Há governos que são mais escrutinados do que outros, sobretudo quando são governos de direita que, tendencialmente, são mais poupados pelos órgãos de comunicação social. Com o objetivo de captar votos e mudar o sentido das sondagens as oposições de direita unem-se e centram-se em temáticas que não interessam nem resolvem problemas do povo. Buscam casos secundários cuja importância é relativa e nada interessa à maior parte do público, mas que é amplificada pelos média desempenhando uma espécie de papel de mandatários da oposição ajudando ao descrédito do Governo em exercício. Exercem pressão e intoxicação da opinião pública para assim criar condições para a sua queda. Isto é, o que as oposições e a sua “entourage” mediática fazem não é escrutinar a eficácia ou a ineficácia da ação governativa, apenas lançam para a opinião pública casos secundários que, mesmo à luz da transparência, em nada resultam de positivo para as populações.
Como referi no início do texto é neste ponto que entra o gato utilizado para a caça ao Governo. À falta de matéria essencial para o escrutinar dispersa-se em outros casos e casinhos, com as famílias deste e daquele ministro, como os familiares tivessem de desistir das suas ocupações porque um deles resolveu aceitar um convite para ministro. Os media acompanham esses casinhos até interessar às suas audiências, quando concluem que o tema que lançaram não tem fundamento sustentável são retirados da agenda mediática.
Há uma pergunta que se pode colocar: alguma vez os media se preocuparam em investigar situações de familiares de ministro e suas ocupações quando a direita está no poder? Serão os partidos de direita tão virtuosos que a transparência é absoluta e não relativa?
Em democracia, sobretudo os media afetos à oposição de direita têm o potencial para ajudar influenciar os eleitores a responsabilizar os políticos e os partidos do governo. Ao relatar o desempenho do governo e fazendo a cobertura de escândalos e de corrupção, os media oferecem informações aos eleitores que são úteis para decidirem se devem ou não reeleger políticos e partidos em exercício. Por outro lado, os media também podem ajudar os eleitores a combater movimentos em direção ao autoritarismo e a facilitar a ação coletiva contra um governo potencialmente autoritário.
Os media transformaram-se numa espécie de Ágoras a que se junta o complot dos comentadores e líderes de opinião onde não se discutem assuntos ligados à vida dos cidadãos, mas que são focalizados em tricas que a maior parte das vezes não lhes interessa.
Podemos ver os partidos da oposição, sobretudo os da direita mais moderada, que, à falta de conteúdo e de ideias para se impor como alternativa credível, lançam mão de tudo o que lhe possa ser útil apenas com o objetivo de desgastar o Governo, mesmo que tal não lhes traga qualquer mudança às dificuldades e problemas que as populações encontram e que são várias, iludindo-se com uma extrema-direita populista como alternativa para a resolução dos seus problemas.
A oposição é indispensável para avaliar as falhas e os excessos do governo e para o responsabilizar perante o público, bem como para sugerir alternativas de governação, mas os conteúdos e a argumentação utilizada não são as mais eficazes.
Um argumento negativo visa criticar, dissecar e desmantelar uma teoria ou uma argumentação oposta, enquanto um argumento positivo propõe algo novo, uma teoria que defenda propostas originais, ou que enfatize novas razões em favor de um ponto de vista já conhecido. Contudo um bom argumento negativo não implica uma proposta positiva coerente, nem vice-versa. Na política, domínio público da argumentação, também há discursos de ambos os tipos. A oposição política consiste principalmente em argumentos do fórum negativo, o escrutínio do governo, mas coerentes e de interesse para o público e que lhe possibilite a escolha em futuras eleições. A oposição sem critério e seriedade podem empurrar o país para o abismo se o Governo não tiver capacidade de resistência às investidas das oposições, quer de direita, quer da extrema-esquerda.
Se olharmos com critério para falta de as propostas da oposição, nomeadamente por parte do PSD, partido que pode ser uma alternativa de poder, não se observa qualquer proposta concreta que possa levar o eleitor a mudar visto que essa escolha seria um tiro no escuro, como já várias vezes a experiência mostrou.