Salto para 2022 cheio de esperança e votos de Feliz ANO NOVO
Votos de FELIZ ANO NOVO para todos
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Votos de FELIZ ANO NOVO para todos
Sou, por natureza, desconfiado em relação às boas intenções dos artigos de opiniões que se publicam na imprensa que pretendem demonstrar isenção, mas que, afinal, são apenas isso, opiniões e, cada opinião sua sentença.
Também sou cético em relação aos comentários que se fazem sobre a atualidade política e, por isso, também aceito que achem o mesmo das opiniões e dos comentários que escrevo. Uma opinião está imbuída de pontos de vista onde a falta de isenção e o sectarismo são facilmente constatados nos textos de quem os escreve.
Vem isto a propósito do artigo de opinião de João Miguel Tavares no jornal Público com o epíteto “Coitado do Manuel Pinho? Não. Coitados de nós.” Quanto ao título estou de acordo, já o mesmo não digo de outras partes do artigo que me pareceram serem tendenciosas.
Antes de continuar convém esclarecer que sou um “tipo” que detesto falcatruas, oportunismos, aproveitamentos, vigarices, trafulhices, branqueamento de capitais, aproveitamento de outros e do próprio Estado para enriquecer e viver à grande, fraude fiscal e fuga aos impostos, enquanto nós os pagamos com grandes sacrifícios. Abomino quem “sacou e saca” poupanças dos clientes dos bancos, “chicos-espertos” que se servem da política para obterem dividendos com negociatas onde perpassa a corrupção passiva e ativa, pagando e recebendo subornos, os que recorrem ao assassinato, se necessário, para evitar revelações sobre transferência de dinheiros, (como este, felizmente poucos), e por aí fora.
Mas não fico por aqui, detesto o arrastar do tempo anos e anos para que se faça justiça utilizando os mais diversos truques à disposição e as mais diversas justificações mais ou menos objetivas porque a lei as permite. São os megaprocessos, são as esperas de respostas de instâncias internacionais a quem foram requeridas informações, etc., etc., são os sucessivos pedidos de recurso sobre penas aplicadas e as prescrições derivadas por ultrapassados tempos legais dos processos. Mas isto é matéria para juristas analisarem. Falta de recursos, falta de material, processos difíceis de gerir por volumosos que são, tudo isto pode ser válido, mas quem tira vantagem disto são os transgressores a braços com a justiça.
O mais curioso também, por coincidência ou não, é que, próximo de tempos eleitorais, uma série de processos saem do torpor em que se encontravam, duma espécie de coma a que se juntam as novidades de outros que aparecem qual magia. E, curiosamente, a maior parte pela mão do mesmo juiz. Mas isto é impressão minha, o tempo da justiça é o que é, e pronto. Não acho mal desde que de facto a justiça funcione e termine célere.
Mas voltemos ao propósito que aqui me trouxe. João Miguel Tavares coloca dois juízes em dois níveis, um do seu agradado, porque implacável e justiceiro e o outro que deixa tudo passar, isto é, abraça a tese do advogado de defesa de Manuel Pinho que admitiu que o Ministério Público querer aproveitar o facto de a instrução do processo ter saído das mãos de Ivo Rosa para as mãos de Carlos Alexandre.
Para João Miguel Tavares, há juízes que fazem o bem perseguindo todos os que prevariquem e sejam oriundos de partidos da área da esquerda e os juízes que facilitam as coisas para o lado da direita, isto, provavelmente, em função dos seus ódios de estimação ou simpatias ideológicas e partidárias. Como ele é um ás da retórica escrita consegue sempre iludir os menos atentos evidenciando-se como um isento redator de opiniões que com o conhecido mecanismo de influenciador e de formação de opiniões
Para ele, JMT, há um juiz bom, o Carlos Alexandre, que “pode ter cometido erros ao longo da sua carreira, mas é um homem abnegado, que procura cumprir o seu dever e honrar o cargo que detém”. Cá está, um super-herói, um justiceiro que vem mesmo a propósito da Comic Con Portugal que se realizou entre 9 e 12 de dezembro do corrente. O outro, um vilão, senhor do mal, Ivo Rosa, “um destruidor de processos, com um ódio patológico à cultura de investigação do Ministério Público, confundindo diariamente o papel de juiz de instrução com o de juiz de primeira instância.”, e por aqui não se fica porque, diz ele, JMT, que “as suas interpretações delirantes são um manancial para expedientes dilatórios das próprias defesas, como se tem visto na Operação Marquês.”. Claro, cá esta´, a Operação Marquês”, Sócrates e outros como Manuel Pinho e outros tantos, todos eles pertencendo ao mesmo naipe odiado por Miguel Tavares que, suponho eu, nem deveriam ter direito a julgamentos, logo para a prisão direitinhos, porque o julgamento já se fez, e muito bem, na comunicação social.
Quanto ao outro lado, quando os crimes são procedentes da direita se não a omissão fica-se caladinho ou muito comedido nas críticas para que a opinião pública não fique com o sentimento de que as suas opiniões sobre o exercício da justiça são apenas para um dos lados.
Vejamos o que ele, JMT, escreve: “Não faltam por aí rumores de estratagemas usados por procuradores para evitar que lhes caia a fava de terem Ivo Rosa como juiz de instrução. Note-se, contudo, que esses estratagemas não existem porque os procuradores só gostem de juízes “fáceis”. Eles existem porque é impossível trabalhar com Ivo Rosa em matérias de criminalidade económica. Não por ser um juiz de instrução rigoroso, mas por ser um fetichista da lei que descobre tantas e tão criativas ofensas a direitos fundamentais que acaba a trucidar o direito mais fundamental de todos para quem veste a beca de juiz – a procura de justiça”. Fantástico, não é?
Como já escrevi no início o que vem a propósito é o meu ceticismo quanto à justeza e isenção das opiniões traçadas por opinion makers que no olho do lado direito utilizam uma pala translucida e com o olho esquerdo destapado fazem parecer mais nítidas as visões de fação. Assim, também, quando escrevo, não consigo esconder a fação, mesmo ao tentar esboçar as minhas visões com os dois olhos, sem pala.
Para além do mais o processo João Rendeiro traz-nos a propósito a criminalidade que fez escola nos últimos anos e a benignidade da forma como a justiça portuguesa muitas das vezes trata os crimes perpetrados por poderosos da alta especulação por atividades financeiras especulativas e ilícitas. A corrupção passiva e ativa de políticos, banqueiros e seus satélites deixa-nos a perceção de impunidade desses senhores arrogantes que nos fazem de parvos.
Os senhores da alta finança sabem e acreditam ou, se preferirem, acreditavam, que o seu estatuto e os meios de que dispõem os tornam intocáveis perante um poder político e uma justiça que se vai arrastando passinho a passinho.
Quando apanhados não ficam sem chão, com o dinheiro ganho em negociatas, recebimentos de luvas ou subtraído a outrem, recorrem aos melhores, mais caros e mais conhecidos escritórios de advogados especialistas na área que os vão “safando” e protelando o final da chatice, por vezes até às prescrições dos processos. Acreditar na justiça e deixar a justiça fazer o seu trabalho sim, mas há limites! Veja-se por exemplo o caso do julgamento de Duarte Lima, antigo deputado do PSD, acusado pelo homicídio de Rosalina Ribeiro, ocorrido no Brasil em 2009, vai iniciar-se só em 9 de março de 2022 no Juízo Central Criminal de Sintra, 12 anos depois.
E não deverá ficar por aqui, surgirão “pauzinhos na engrenagem” para continuar a empatar. Nada disto passa em branco numa sociedade que contempla tudo isto. Dizem-nos que há o tempo da política e o tempo da justiça. A sério?!
Ainda a propósito de João Rendeiro tem-se falado e escrito muito na última semana, mas e outros casos que não fugindo andam por aí, aguardando ou adiando julgamentos e possíveis condenações o passa para a opinião pública a ideia da demasiada complacência para com esses senhores. Deram-lhe tempo para tudo inclusivamente para fugir.
Conforme tem sido divulgado pelos órgãos de comunicação social Rendeiro teve tempo para vender bens imobiliários, obras de arte, engendrou moradas falsas na Polónia e até teve tempo de sobra para preparar a fuga com tal desplanto que parece um filme de uma série policial em que, no final o criminoso consegue escapar-se indo passar os seus dias numa praia de um qualquer paraíso. Não terá sido apenas João Rendeiro que sozinho arquitetou todo plano, decerto que teve como conselheiros advogados estrategas nestas andanças.
Os populismos da extrema-direita sabem bem aproveitar tudo isto lançando desconfianças acerca da justiça em Portugal devido à disparidade de acesso e de tratamento entre arguidos com mais ou menos posses.
Quem sou eu para comentar, bem ou mal, o que doutos professores catedráticos, comentadores, experimentados políticos, conceituados jornalistas, analistas políticos (que proliferam nos canais de televisão), sindicalistas, bastonários de ordens profissionais que fazem política pró- partidária, cientistas, e muitos outros. Uns sentados nos bancos do serviço público e outros que se movem no mundo das instituições privadas onde praticam elaborações de leis e defesas de alta corrupção, mas que escrevem e proferem opiniões sobre tudo, mesmo sobre o que não dominam, nos vários órgãos de comunicação social, da imprensa à televisão. Lançam sabedoria que o público admira e consome. Sendo, conhecidos, sobretudo, pelos seus prognóstico e oráculos, obtidos por canais privilegiados e informais de amigos do governo ou de fora dele. Conjetura-se que transacionem informações sobre processos de investigação criminal em segredo de justiça e, como troca, entra-se no jogo do dás-me isso e eu dou-te aquilo.
Quem não têm amigos e conhecidos em postos chave há intermediações a fazerem-lhes chegar às mãos informações privilegiadas para em seguida emitirem opiniões escritas ou verbalizadas de algo que desconhecem sobre pessoas públicas que têm uma reputação a defender. É extraordinário que ninguém lhes pergunte pelas provas do que afirmam com tanta certeza, que ninguém pergunte onde estão os factos que justificam as suspeitas, enfim, que ninguém pergunte nada, apenas suspeições. É o velho aforismo da mentira tantas vezes repetida que passa a ser verdade.
Parece-me vir a propósito a forma como vejo de fora a imprensa e a televisão a formatarem e a lançarem para o público a informação editada. Por muito que se diga o contrário os media e os jornalistas são atores políticos que muitas vezes seguem subtilmente agendas partidárias ou ideológicas consequentes das especificidades editoriais.
A relação entre os órgãos de comunicação social e a política acentuou-se consideravelmente de tal forma que é impossível conceber a política sem a existência de um ambiente jornalístico, notando-se da parte dos políticos, sobretudo, quando num governo, envidarem esforços para controlar as margens de incerteza resultantes de um relacionamento dinâmico com a opinião pública. Um caso paradigmático é a falta de estratégia para controle de danos, para alguns deixado ao acaso dos acontecimentos, como aconteceu com o ministro António Cabrita.
Atualmente a ferramenta mais eficaz para comunicar com o público, ou melhor com os eleitores, é a televisão que, no entanto, é mediada/conduzida por jornalistas. Em última análise, empresas mediáticas que se orientam por valores e princípios distintos daqueles que são defendidos por poderes democraticamente eleitos, passa a haver uma tensão latente entre os media e esse tal poder político, sobretudo quando este não é da “simpatia” de algumas redações. Isto passa-se com um qualquer candidato seja ele a líder partidário, a ministro ou a primeiro-ministro de um governo quando não é o preferencial por um determinado órgão de comunicação.
O desagrado com alguns políticos e práticas políticas, com determinado governo ou com um primeiro-ministro pode manifestar-se num ataque cerrado por parte do media. É frequente a insistência diária e sistemática sobre o mesmo assunto, nomeadamente das televisões, a incidência em aspetos negativos sobre uma qualquer figura pública da política, atuação ministerial, mau funcionamento de instituições e falhas em determinada área como forma de colocar em desfavor a opinião pública considerando tal atitude como a de escrutinar o poder.
Em democracia o escrutínio do exercício político dos governos e do poder político, são uma das mais importantes e legítimas funções do jornalismo, mas a liberdade de imprensa não é um privilégio dos jornalistas, mas sim uma condição da liberdade de expressão dos cidadãos visto estes só poderem captar um conjunto muito limitado de acontecimentos.
Os jornalistas não foram eleitos nem representam oficialmente ninguém, mas têm um contrato informal com os cidadãos numa espécie de procuração que lhes confere o dever de zelar pelo cumprimento dos valores democráticos e denunciar as suas falhas, através de uma informação isenta e verdadeira. Sublinho isenta porque considero ser óbvia a verdade e a isenção no jornalismo sério.
Por vezes alguma comunicação social atua tendenciosamente através da procura e da insistência em factos marginais para desacreditar na opinião pública um cidadão ou um poder político porque pertencem a uma dada área partidária e ideológica que pretendem atacar.
Um caso evidente e atual e que tomo como exemplo do que refiro são as falhas nos serviços de saúde públicos, tema sensível na opinião pública, que têm sido são diariamente salientados durante o atual Governo mesmo durante a contingência das vagas da crise pandémicas. Os meios de comunicação não devem, nem podem, tentar omitir os problemas que se passam no SNS que acho devem ser noticiados nos limites do bom senso e do não alarmismo. Alguns dos problemas no interior dos serviços do SNS que nos chegam como telespectadores fica-se com a perceção de que são por vezes organizados para criar instabilidade sobre o sistema e as ordens dão uma ajuda, mas quando o poder pertence a uma área ideológica da sua “preferência” os mesmos media manifestam mais complacência para com os problemas detetados e dados como notícias marginais.
Vejamos o caso mais paradigmático quando, durante o Governo PSD-CDS com Passos Coelho primeiro-ministro, a esquerda o pelos cortes no SNS. Durante esse período órgãos de comunicação afetos à direita que, pressurosamente, publicam notícias, comentários e opiniões favoráveis omitindo, na altura, os reais problemas.
Situemo-nos então no caso do SNS ao tempo do Governo de Passos Coelho. Quando em janeiro de 2015 Passos justificava que a qualidade do SNS não podia ser aferida pelas falhas registadas que coincidiram com o período de crise no país e reconhecia que a pressão e o escrutínio mediático criavam muita pressão. Sobre o agravamento nas urgências hospitalares, Passos dizia na altura que "não se confunda o que se está a passar, se passa em Portugal" com o que "se tem passado noutros países" de "uma forma anormal, desafiando a capacidade instalada e a qualidade dos profissionais".
O que se verifica hoje apesar da pressão causada no SNS pela pandemia covid-19 é que sindicatos e ordens de médicos e enfermeiros que se juntam para fazer coro nos órgãos de comunicação que diariamente e com presteza por via do SNS pretendem atacar o Governo.
Também em janeiro de 2015 durante o Governo de Passos Coelho num debate com o primeiro-ministro na Assembleia da República a dirigente Catarina Martins do BE criticava Passos por não ter apresentado "uma única medida que o Governo tenha tomado para contrariar o descalabro na saúde", recebendo apupos da bancada do PSD. Acrescentava então: "Poupou-se despesa no SNS, mas não se pouparam vidas e isso não se pode desculpar a um Governo e que "Poupou-se despesa no SNS, mas não se pouparam vidas e isso não se pode desculpar a um Governo". Foi esta a intervenção da dirigente da extrema-esquerda durante o debate quinzenal no parlamento: "Quero saber de que cortes na despesa é que se orgulha, três dias antes de ter morrido uma pessoa sem assistência no Hospital de Santa Maria, a diretora das urgências disse que não tinha meios, nós temos pessoas a morrer nas urgências sem assistência".
Com o presente Governo socialista já demissionário e na antecipação da campanha contra o PS o sinal dado pelos órgãos de comunicação as para as criticas ao SNS, que já tinham sido iniciadas pelas ordens dos médicos e sindicatos independentes, que também fazem política partidária, foram reforçadas em junho do corrente por Passos Coelho que, segundo a TSF, numa intervenção de mais de 50 minutos, acompanhada na primeira fila pelo candidato à Câmara de Lisboa Carlos Moedas, Passos Coelho apontou "um paradoxo" à esquerda no domínio da saúde em particular.
"Seria imperdoável que a esquerda, que diz ser que é uma espécie de 'alma mater' do SNS o esteja a desqualificar desta maneira e que seja a o que se chama de direita sempre a tentar salvar a situação e ver se lhe consegue dar sustentabilidade". Criticava o que o que chamou de "estatização" do SNS, que considera ter resultado na falta de atração dos profissionais e na degradação de equipamentos e serviços prestados.
Durante a apresentação do livro de um militante do PSD este afirmou que Passos nunca cortou no SNS. E janeiro de 2021 no jornal Observador o dito militante apresentou uma série de generalidades e medidas avulso como medidas tomadas por Passos Coelho para melhorar o SNS que iam da “manipulação inteligente do sistema informático” que “que pôs todos os médicos a receitaram por princípio ativo genérico”, e na poupança em exames e medicamentos sem interesse clínico efetivo, “alargou os horários dos médicos para 40 horas, aumentando assim a oferta de mais horas médicas e poupando em horas extra, que pode ler aqui, coisa que os médicos posteriormente contestaram. Recordo-me daquela altura em que os médicos de família com receio reduziam os medicamentos e os exames aos utentes ficando sem meios de diagnóstico eficazes como aconteceu comigo.
Recorde-se que em 2008, durante o Jornal Nacional da TVI, em campanha para a liderança do PSD Manuela Ferreira Leite e Passos Coelho, candidatos à liderança do PSD, declaravam-se a favor do fim do Serviço Nacional de Saúde (SNS) tendencialmente gratuito para todos, defendendo que sirva quem tem menos recursos e Passos reforçava então que "concordo com este princípio de acabar com a universalidade na área da saúde e não só". Isto era a proposta para um SNS para pobres e outro para ricos, isto é, o fim de um SNS universal.
Tenho observado ao longo dos anos que os órgãos de comunicação social serem mais condescendentes, muitas vezes por omissão, com as falhas e os erros dos governos de direita e ávidos predadores sempre ao ataque quando os governos são do Partido Socialista moldando de forma mais ou menos direta, a perceção que cada um de nós tem da realidade em que se insere. Deste modo, os jornalistas deixam de ser mediadores e transforma-se em contrapoder e em produtores de opinião pública e a perceção com que ficamos pode ser uma armadilha lixada. Ainda que os factos seguramente nos digam uma coisa, temos a capacidade de construir sólidos argumentos excecionais para sustentar o contrário, se para isso formos levados.
Partilho este artigo publicado no blogue Estátua de Sal, da autoria de José Gabriel, que achei interessante e cuja atualidade é inegável.
Estamos literariamente tramados!
(José Gabriel, 26/11/2021)
Estamos tramados! Olhai senhoras e senhores; vós, que gostais de ver a língua portuguesa – ou qualquer outra de qualquer literatura a que conseguis chegar – brilhar, que admirais como ela vive e voa nas mais diversas figuras de estilo. Vós, que apreciais a ironia, qua sabeis saborear uma boa metáfora, que ousais uma hipérbole, uma elipse, um paradoxo e todos aqueles recursos com os quais nos animamos e ilustramos uns aos outros e, sobretudo, com os quais habitamos os textos dos nossos escritores favoritos, estamos ameaçados, se não de extinção, pelo menos de um cerco cada vez mais apertado. Esquecei a vossa sensibilidade, pendurai a vossa inteligência, que os polícias da escrita e sanguessugas do espírito estão aí em força. Purificai, pois, a língua e a literatura, ou sereis purificados por outrem.
Já não falo em Bolsonaro que quer exterminar os livros que se lêem nas escolas, não só porque os considera “lixo” por padecerem “dessa historiazinha da ideologia”, mas porque “são um montão de amontoado de muita coisa escrita”.
Mas que dizer do civilizado Canadá, onde comissões escolares proíbem que nos livros figurem palavras como “índio” e “esquimó” e fazem queimas de livros tão perigosos e subversivos como os que ostentam personagens como Asterix, Tintin, Pocahontas, e Lucky Luke? Claro que como os purificadores são pessoas de bem, as cinzas dessas queimas são usadas para adubar árvores (não estou a inventar).
Hong Kong e a China em geral procedem a uma limpeza de manuais e livros estrangeiros – alguns de autores tão perigosos como Homero e Sharespeare – que podem ameaçar a segurança nacional ou corromper “com literacias de outras nações” o espírito delicado dos seus jovens. O Reino Unido, não se ficando para trás, baniu das suas escolas todos os livros que promovam o fim do capitalismo.
Pelo Brasil, os censores literários vêm de todos os lados. E é ver académicas questionar livros de Eça de Queirós – o Eça leva sempre. Serão “Os Maias” racistas? – perguntam. E mais: nesse romance, Eça “desumaniza “as suas personagens femininas, comparando-as com animais e plantas, numa torpe prática literária animista. De modo que já sabeis: nem personificar nem animalizar. Não mais direis que aquela ginasta tem a flexibilidade de um junco, que aqueloutra é rápida como uma gazela nas pistas, voa como uma águia no triplo salto ou é uma leoa no judo. Logo alguém vos repreenderá por diminuir as personagens animalizando-as, e outro alguém vos acusará de ofensa aos animais personificando-os. Com os inquisidores, não há saída.
E pelas Américas do Norte? Aí, é um fartote. Pobre Mark Twain, que vê o seu “As Aventuras de Huckleberry Finn” reescrito e expurgado das palavras consideradas inconvenientes, como, por exemplo, “negro” (nigger) e índio (injun) agora substituídas por “slave” e “indian”, consideradas mais convenientes. E, como sabemos, nem Harper Lee o excelente “Mataram a Cotovia” se salvaram, sendo considerada uma obra muito problemática, onde ocorre 40 vezes a palavra “nigger” e, além disso, dá demasiada importância à personagem do “salvador branco”. Branco, vejam bem!
E as personagens? Que fazer delas? Como poremos a falar o patife escravocrata, o latifundiário dos campos de algodão, quando se referir aos seus…bem…escravos (com vossa licença). Já estou a imaginá-lo a falar ao povo:
“Os meus afro-americanos e afro-americanas colaboradores e colaboradoras, de minha propriedade à face da lei e de Deus, que trato com paternal desvelo, tanto são recompensados nas raríssimas ocasiões em que o merecem, como pedagogicamente punidos – com muita pena minha, doí-me mais a mim que a eles – num encontro dialéctico entre o chicote e as suas costas, sendo o castigo mediado pelo meu caucasiano capataz…” – e por aí fora.
É isto. Já tínhamos os terraplanistas, agora temos os linguaplanistas. Escondam os vossos livros nas versões originais, meus irmãos, que após o extermínio das palavras, dos sentidos, da criação, pode vir o dos próprios livros (e, ensina a História, o dos autores e, até, dos leitores). Bradbury já nos ensinou a temperatura: Fahrenheit 451.
Em verdade vos digo: estamos tramados.
(Texto motivado por um artigo publicado na revista Somos Livros (Bertrand) da autoria de Marisa Sousa.)
Imagem RTP – Cinco sentidos
Encontrei as folhas que abaixo transcrevo no meio de uns livros da minha estante. São originais inéditos que ficaram por aqui desde a altura em que Maria Isabel Moura vinha de Espinho até Lisboa para finalizar as suas escritas. Com a devida autorização da autora resolvi divulgar e tornar públicas aquelas folhas.
São cinco folhas dedicadas aos cinco sentidos, um exercício de escrita naïf pleno de criatividade expressiva. São diálogos simples, mas com uma força que revela a complexidade dos sentidos que nos leva à imaginação do dano que nos causaria a sua perda.
Seguem-se mais quatro folhas, uma espécie de continuidade dos cinco sentidos na perspetiva duma aplicação ritualizada.
Maria Isabel Moura nasceu na Covilhã, em 1955. Cresceu e interessou-se pela leitura na aldeia dos Trinta, no distrito da Guarda, em plena Serra da Estrela. Fez os seus estudos no Colégio do Ramalhão instalado no antigo Palácio do Ramalhão, em Sintra, com a sua serra e neblinas, palácio onde reis e rainhas arrastaram saias, paixões, sofrimentos, loucuras e exílios. Colaborou com Jornal do Fundão e o seu trabalho sempre foi com Matos Costa, ilustrador constante das suas obras e companheiro de vida.
Em Espinho, junto ao mar, viveu anos e anos respirando a maresia e o bulício do verão que os turistas causavam ao sossego da cidade. Frequentava Lisboa onde, com avidez, procurava a intelectualidade dos amigos. Reside atualmente em Guimarães, cidade onde continua a sonhar.
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Da mesma autora já foram publicados os seguintes títulos:
Vinte maneiras diferentes de contar a mesma história Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca 1998; |
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Vou dar pontapés na Lua, contos infantis, Edições Afrontamento, 2004. Plano Nacional de Leitura Livro recomendado para o 3º ano de escolaridade, destinado a leitura autónoma. |
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Todo o começo é involuntário, com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, Editorial Teorema, 2001; |
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OS CINCO SENTIDOS
A VISÃO
- Que cor é aquela?
- Não me lembro do nome. Não é azul… é outra coisa...
- Espera! Espera aí! Papoilas são vermelhas, malmequeres brancos e amarelos… Violeta! Aquela cor é violeta. Como as flores.
- Já pensaste como seria o mundo se a gente não visse as cores?
- Não. Nunca…
- E...
- E é como aquelas fotografias antigas, em que é tudo castanho, não dá para ver se é Verão ou Inverno…
- Já sei! É como uma fotografia que eu vi: o vestido era de Verão, mas atrás estava uma árvore de Natal!
- Pois é isso mesmo. Tem que se ter muita atenção, adivinhar tudo…
- Que trabalheira que isso dava. . .
- Sabes, há gente assim. Até tem um nome e tudo: daltónico.
- Dal... tó… ni... co…
- Pois, é como ser cego nas cores. É tudo igual!
- E isso pega-se? Pode-se apanhar?
- Acho que não… o meu tio é...
- E tu chegas-te ao pé dele, não tens medo?
- Conheço-o desde que. nasci... até me sentava no colo dele quando era pequenino... acho que não se pega.
- E ele faz muitas asneiras? Quero dizer, come a tarte em vez do empadão, coisas assim?
- Não!... Mas agora que falas nisso... já sei porque é que ele de vez em quando, veste esquisito. Julguei que era porque gostava. Até tem uns sapatos vermelhos!
- Uns vermelhos?!! Eu sempre quis ter uns sapatos vermelhos, mas a mãe não me deixa... E se eu lhe dizer que tenho isso, achas que ela mos dá?
- Se calhar...
- Então diz outra vez a palavra! Para eu não me esquecer.
O TACTO
- Eu conheço esta voz...
- Eu também. É a do Leão.
- O senhor Luís prendeu-o outra vez... porque será que ele
faz isso? ele é um bom cão. É bom no abraço…
- Não sei...
- E meter as mãos com os dedos todos «abertos no pelo do
pescoço… é tão macio!
- E esfregar a cara na parte detrás das orelhas!
- Ah, isso não sei, nunca fiz.
- É como quando se toca no musgo, devagarinho, com a ponta
dos dedos. Ou em veludo!
- Eu gosto de tocar em cetim. É… é…doce!
- A tia Clara tem uma blusa de cetim…, mas os beijos dela
picam!
- E o tio Jaime arranha. Arranha como as árvores.
- Porque será?
- Acho que é porque tem muitos ossos. Acho que tem mais ossos
que o resto das pessoas…
- Se calhar é isso… às vezes até tenho vontade de trepar
por ele acima, como fazemos no castanheiro.
- Sabes, outro dia o castanheiro quase que conseguiu abraçar-me de volta!
- E como é que ele fez isso?
- Com a ajuda do vento. Esteve quase, quase.
- Deve ser bom ser—se abraçado por uma árvore…
- Pois, mas temos de lhe pedir agora, depois já não dá.
- Porque será que quando se cresce essas coisas já não
acontecem? acho que não se tem tempo para esperar.
- Não sei... acho que não se tem tempo para esperar.
A AUDIÇÃO
- Que é isso?
- Isso o quê?
- O que estás a cantar.
- É a cantiga daquele pássaro. O preto, de bico amarelo,
aquele ali, naquele ramo.
- Não é nada! Isso é uma música do rádio!
- Não é não! Não é não. é a do passarinho.
- E os pássaros ouvem rádio?
- Não sei..., mas sei que se fosse eu a fazer as músicas do rádio as fazia assim.
- Assim como?
- Como nós estamos. Estendia-me no chão e ficava a ouvir.
- A ouvir os passarinhos?
- Tudo! A ouvir o mundo.
- Engraçado. . . aquele pardal acho que está a cantar com o teu
pássaro.
- E o grilo com o vento.
- E o vento com as árvores.
- Só falta pôr as palavras…, mas eu não tenho as palavras,
só a música.
- E temos de pôr palavras redondas como o pássaro de bico
amarela, pontiagudas como o grilo, suaves como o vento...
- E tu, sabes essas palavras?
- Eu não..., mas o meu tio é poeta, ele sabe!
- E achas que ele se quer vir aqui deitar connosco?
O OLFACTO
- Hummm!! Que cheirinho a violetas! Vamos procurá-las?
- Porquê? Estamos tao bem assim…
- Porque gosto de violetas. Quero fazer um raminho para levar para casa.
- Está bem…
- Onde vais? O cheiro vem dali...
- Desculpa... eu não sinto o cheiro.
- Estás constipado?
- Não… eu sinto o cheiro de nada... não sei o que é isso.
- Nada de nada?
- Nada...
- E quando o almoço é frango assado?
- Já disse que não!
- Não te zangues. Mas que engraçado, é como se tu fosses cego do nariz!
- Não é engraçado, não acho que seja!
- Olha: eu vou-te ensinar os cheiros. As flores são doces, como gelados. o vinagre pica... frango assado é.… não, não sei explicar!
- Tenta, tenta outra vez! Quero entender!
- É muito difícil... olha, para veres como é difícil, vamos fingir que eu sou cega e explica-me as cores!
- Fácil: o vermelho é quente. O azul é suave, mesmo o azul-escuro da noite é…
- Não sei o que é a noite.
— Esqueci-me.… e então como é que eu explico?
- Não sei... é muito difícil...
- Olha, as violetas!
- Já sei! Vou andar com algodão no nariz para ele ficar cego também… só um bocadinho, para ver como é….
O PALADAR
- Hiii!!! Que chocolate grande tu tens aí no bolso!
- Ah, pois é! Já me tinha esquecido. Queres?
- Todo?!! Todo, todo, todo, todinho para mim?!! E tu? - Eu não quero. Eu não gosto de chocolate.
- Não gosto de chocolate, nem de bolos, nem de gelados... não gosto de coisas doces.
- Nem de gelados?
- Não acredito! Toda a gente gosta de gelados!
- Só de gelado de limão.
- Puahh!! Que porcaria. Ê azedo!
- É nada! Faz piquinhos na língua como os pickles.
- E tu gostas de pickles?! Que horror!
- De pickles, de empadão de carne, de presunto, de croquetes,
de sardinhas, de caracóis. . .
- De caracóis?! E as pessoas comem isso?! Puahhh!! Que porcaria! castanha de chocolate! Até ao nariz!
-É… e tu estás toda castanha de chocolate! Até ao nariz! Do nariz ao umbigo!
- Minha avó diz que gostos não se discutem… nunca tinha entendido... E gostas mesmo de caracóis?
- E tu, de chocolate?
- Ah, ah, ah!
- Ah, ah, ah!
- Olha, aquela nuvem parece um gelado, um gelado de morango coberto de natas.
- Que nada! É um empadão de carne.
- Um bolo de chocolate!
- Um frango estornicado!
- Corre, vamos para casa que vai chover!
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AMORAS
- Trouxeste o teu saco?
- Não... esqueci-me…
- E agora? Como vamos fazer?
- Não sei... tens alguma ideia?
- Eu não…
- Podemos metê-las no chapéu!
- E depois? quando chegarmos a casa como vai ser?
- Posso dizer que o perdi…
- Não podes não, as mães sabem sempre que mentimos.
- Então empresta-me o teu saco!
- Não posso… também me esqueci .
- Ah, ah, ah!!
- De que te ris?
- Como é que tu gostas de comer amoras?
- Pretas, pretas. Maduras!
- Não é isso... onde é que tu gostas de comer amoras?
- Aqui. Logo que as apanho.
- Eu também... em casa parece que não sabem tao bem... parece que deixam de ser doces...
- Nem são tao sumarentas... acho que -dei iam de- ter o sol dentro...
- É por isso que me estou a rir. Acho, que sem querer, nos esquecemos de propósito...
AS CORES
- De todas as cores do mundo, de qual gostas mais?
- Não sei... nunca pensei nisso...
- Então pensa.
- Agora, agorinha mesmo, é do azul... só que não sei de qual azul... Uma vez pus-me a contar quantos azuis há no céu...
- E?
- Perdi a conta. Quanto mais se olha mais azuis há.
- Engraçado, é mesmo... acho que há infindões! É como os verdes, também nunca mais acabam.
- E tu? De que cor gostas mais?
- Do vermelho! Tenho uma camisola vermelha de que gosto muito, mas é muito quente, só se pode usar no Inverno...
- Eu tinha uma amarela, mas já não me serve... e a mãe não me deixa usá-la...
- Porque será que as mães nunca entendem nada? A mim nunca me deixa vestir como eu quero, tem que ser como ela gosta.
- Porquê?
- Diz que eu não sei nada, diz que me visto a parecer um arco-íris.
- E ela não gosta do arco-íris?
- Não sei, nunca lhe perguntei. Mas acho que não.
- Ah, eu se pudesse, se a mãe deixasse, tinha sempre um comigo!
- Eu também. Trazia um vestido, pintava um nas paredes do quarto...
- Forrava os livros da escola e dava um à avó, ela veste sempre com cores tão tristes!
ARCO-IRIS
- Olha! Olha além no céu! Um arco-íris!
- Onde? Onde? Ah! Que bonito!
- Dizem que no fim do arco-íris há um pote cheio de ouro. - Ouro, ouro, a sério? Como o dos fios?
- Sim. Mas está todo em moedas, que há um pote cheio de moedas de ouro.
- Era engraçado se nós o encontrássemos… O que é que tu fazias com um pote cheio de ouro?
- Não sei... nunca pensei nisso... acho que comprava montes e montes de chocolates.
- Gelados!
- Rebuçados!
- E podemos ir á loja com moedas de ouro?
- Não sei... acho que não. Primeiro tínhamos de ir ao Banco trocar o ouro por dinheiro de ir às compras.
- E nós, podemos ir ao Banco fazer isso?
- Eu punha um bigode para parecer crescido!
- E um chapéu. É melhor pôr também um chapéu.
- E um sobretudo comprido, para parecermos mais altos.
- E uns óculos de ver… e se o balcão for muito alto, como é que vamos fazer?
- Levamos um banquinho escondido debaixo do sobretudo.
- E se fossemos ver se é verdade? Vamos procurar o fim do arco-íris?
- Já não vale a pena... está a desaparecer... uma vez, faz muito tempo, vi um arco-íris a sair de uma poça de água...
- E nada, não tinha nada na poça, só lama...
- Ah! De certeza que era o começo do arco-íris, não era o fim!
DANÇA
- Sabes dançar?
- Não, acho que não.
- Eu gostaria de saber. Gostava muito de saber dançar como
vimos ontem na televisão...
- Como o Ballet?
- Sim, gostaria muito de saber dançar Ballet.
- Eu também, às vezes acho que sim, mas depois vejo os
pássaros a dançar no céu…
- E as árvores? Já viste como elas bailam com o vento, em dias de tempestade?!
- E os cisnes, os cisnes no lago do senhor Antero.
- O mar e a areia...
- O vento e as espigas de trigo.
- O rio com as pedras! Quando vejo o rio a dançar sei que nunca conseguirei...
- Mas eu gostava de tentar, eu queria aprender.
- Achas que se aprendermos a nadar que depois é mais fácil dançar?
- Talvez... dançar na água é capaz de ser mais fácil!
- Ou aprendermos a voar. No ar parece tão fácil!
- Ou então...
- Então o quê?
- Fincarmos os pés bem fundo no chão e pedirmos ao vento para nos ensinar a bailar.